— Trabalharei — disse Gringoire — com tudo que for do vosso agrado.
Clopin fez um sinal. Alguns do calão saíram do círculo e voltaram passado um momento. Trouxeram dois postes terminados na extremidade inferior por duas espátulas que os faziam facilmente suster-se ao alto; à extremidade superior dos dois postes adaptaram uma viga transversal e o todo constituiu uma bela forca portátil, que Gringoire teve a satisfação de ver levantar diante dele num abrir e fechar de olhos. Nada faltava, nem mesmo a corda que se balouçava graciosamente por baixo da travessa.
— Onde quererão eles chegar? — perguntou Gringoire aos seus botões, não sem alguma inquietação. Um ruído estranho que ouviu naquele momento pôs cobro à sua ansiedade; era um manequim que aqueles bandidos tratavam de pendurar pelo pescoço na corda, espécie de espantalho de pássaros, vestido de vermelho e de tal modo carregado de guizos e campainhas que com eles se poderiam arrear trinta mulas castelhanas. Essas mil campainhas vibraram durante algum tempo com as oscilações da corda, depois essas vibrações foram-se extinguindo a pouco e pouco até cessarem quando o manequim ficou reduzido à imobilidade pela lei do pêndulo que destronou a clepsidra e o relógio de areia.
Então, Clopin, mostrando a Gringoire um velho escabelo a cambalear, colocado por baixo do manequim:
— Sobe ali acima.
— Oh! com os diabos! — objetou Gringoire — Vou quebrar a cabeça. O vosso escabelo coxeia como um dístico de marcial: tem um pé hexâmetro e um pé pentâmetro.
— Sobe — repetiu Clopin.
Gringoire subiu ao escabelo e conseguiu, não sem algumas oscilações da cabeça e dos braços, encontrar nele o seu cento de gravidade.
— Agora — continuou o rei de Tunes — traça o teu pé direito à roda de tua perna esquerda e levanta-te sobre a ponta do pé esquerdo.
— Monsenhor — disse Gringoire — tendes decidido empenho em que eu parta algum membro?
Clopin maneou a cabeça.
— Olha, meu amigo, tu falas demais. Eis em duas palavras do que se trata: tu vais pôr-te na ponta do pé, como te disse; desse modo poderás chegar ao bolso do manequim; mexerás aí; tirarás uma bolsa que lá está; se tu fazes tudo isso sem que se ouça o barulho de uma campainha, está bem; serás dos nossos. Só temos a encher-te de pancadas durante oito dias.
— Safa! Eu me acautelarei — disse Gringoire — E se eu faço cantar as campainhas?
— Em tal caso serás enforcado. Compreendes?
— Absolutamente nada — respondeu Gringoire.
— Ouve-me mais uma vez. Vais apalpar o manequim e tirar-lhe a bolsa; se uma só campainha tocar durante esta operação, serás enforcado. Compreendes agora?
— Compreendo — disse Gringoire — E depois?
— Se tu consegues tirar a bolsa sem que se ouçam os guizos, entras para a confraria e serás espancado durante oito dias consecutivos. Compreendes decerto, agora.
— Não, monsenhor; não compreendo. Que vantagem tenho eu? Num caso enforcado, noutro espancado?
— E ser bandido — atalhou Clopin — ser bandido não é nada? É para teu bem que nós te bateremos, para te acostumar às pancadas.
— Muito obrigado — respondeu o poeta.
— Vamos, despacha-te — disse o rei batendo com o pé no tonel que produziu o som cavo de um tambor. — Apalpa o manequim, e acabemos com isto. Advirto-te, pela última vez, que se eu ouvir um guizo só que seja, tomas tu o lugar do manequim.
A quadrilha do calão aplaudiu as palavras de Clopin e postou-se em círculo em roda da forca, com um rir de tal modo impiedoso que Gringoire percebeu que os divertia muito para não ter tudo a recear deles.
Não lhe restava pois esperança alguma a não ser a felicidade bem pouco provável na operação que lhe era imposta; decidiu-se a correr-lhe o risco, mas não sem primeiro dirigir fervorosa prece ao manequim que ia roubar e que era mais fácil de enternecer do que aqueles bandidos. Aquela miríade de campainhas com as suas linguazinhas de cobre pareciam-lhe outras tantas goelas de víbora, prontas a morder e a sibilar.
— Oh! — murmurava — é possível que a minha vida dependa da mais pequena vibração do mais pequeno destes guizos? Oh! — acrescentava com as mãos postas — Campainhas, não toqueis! Guizos, não vos mexeis!
Tentou ainda apelar mais uma vez para Trouillefou.
— E se vem um pé de vento? — perguntou-lhe.
— És enforcado — respondeu o outro sem hesitar.
Vendo que não havia reflexão, nem réplica, nem evasiva possível, dispôs-se resolutamente: traçou o pé direito à volta do pé esquerdo, levantou-se sobre o pé esquerdo, e estendeu o braço... mas na ocasião em que ia chegar ao manequim o seu corpo, que apenas tinha um pé, cambaleou sobre o escabelo, que só tinha três; quis maquinalmente agarrar-se ao manequim, perdeu o equilíbrio e caiu pesadamente por terra, completamente aturdido pela fatal vibração das mil campainhas do manequim, que, cedendo ao impulso da sua mão, descreveu uma rotação sobre si mesmo, depois balançou-se majestosamente sobre os dois postes.
— Maldição! — gritou ao cair, e ficou como morto, o rosto voltado contra o chão.
Contudo ouvia o terrível carrilhão por cima da cabeça e as risadas diabólicas dos bandidos e a voz de Trouillefou que dizia:
— Levantem-me este patife e enforquem-no quanto antes.
Gringoire ergueu-se. Já tinham desprendido o manequim para lhe darem lugar.
Os do calão fizeram-no subir ao escabelo. Clopin acercou-se dele, passou-lhe a corda à volta do pescoço e batendo-lhe no ombro, disse-lhe: — Adeus, amigo! Agora não te podes tu safar nem com a ajuda do papa.
A palavra perdão veio expiar nos lábios de Gringoire. Passeou os olhos em redor; mas nenhuma esperança; todos riam.
— Bellevigne da Estrela — disse o rei de Tunes a um enorme bandido que saiu do seu posto — trepa à travessa.
Bellevigne da Estrela subiu ligeiro à trave transversal e num instante Gringoire, ao levantar os olhos, viu-o empoleirado sobre a sua cabeça.
— Agora — continuou Clopin Trouillefou — quando eu bater as palmas, tu, Andry Vermelho atirarás fora o escabelo com um pontapé; tu, Francisco Chante-Prune, pendurar-te-ás nos pés deste maroto; e tu, Bellevigne, cavalgar-lhe-ás sobre os ombros; e todos três a um tempo, entendem?
Gringoire estremeceu.
— Estais prontos? — disse Clopin Trouillefou aos três do calão prontos a precipitarem-se sobre o desventurado. O pobre paciente teve um momento de espera terrível enquanto Clopin atirava tranquilamente com a ponta do pé para a fogueira alguns cavacos que as chamas tinham poupado. — Estais pronto? — repetiu, e abriu as mãos para dar as palmadas. Um segundo mais, tudo estava terminado.
Mas deteve-se como salteado por uma ideia repentina.
— Um instante — disse ele — já me esquecia!... É da praxe que não enforquemos um homem sem perguntar se há alguma mulher que o queira. Camarada, é o teu último recurso. Ou casar com uma das nossas ou a corda.
Esta lei dos ciganos, por extravagante que possa parecer ao leitor, está ainda hoje escrita com todas as letras na velha legislação inglesa.
Gringoire respirou. Era a segunda vez que voltava à vida no espaço de meia hora. Por isso mesmo não confiava muito no inesperado recurso.
— Olá! — bradou Clopin subindo para a pipa — Olá! mulheres, fêmeas, há alguma entre vós, desde a feiticeira até à gata, que queira este patife? Olá, Colette la Charonne! Elisabeth Trouvain! Simone Jodouyne! Marie Piédebou! Thonne a Comprida! Bérarde Fanouel! Micaela Genaille! Cláudia da Orelha roída! Maturina Girorou! Olá! Isabeau la Thierrye! Chegai-vos e olhai! Um homem de graça! Quem quer?
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