O rei, do alto da sua pipa, dirigiu-lhe a palavra.
— Quem é o maroto?
Gringoire estremeceu. Aquela voz, apesar do seu tom de ameaça, lembrou-lhe uma outra que na manhã daquele dia dera a primeira punhalada no seu mistério, dizendo em voz fanhosa, no meio do auditório: Uma esmola, por amor de Deus! O pobre poeta levantou a cabeça. Era efetivamente Clopin Trouillefou.
Clopin Trouillefou, revestido das suas insígnias reais, não tinha um farrapo de mais nem de menos. A chaga do braço desaparecera. Empunhava um desses chicotes, de tiras de couro branco, de que nesse tempo se serviam os aguazis para conter em respeito a multidão. Tinha na cabeça uma espécie de touca guarnecida de arcos e fechada no alto; mas era difícil distinguir se era uma coifa de criança se uma coroa de rei, tanto as duas coisas se assemelham.
No entanto Gringoire, sem saber porquê, criara alguma esperança ao reconhecer no rei do Pátio dos Milagres o seu maldito mendigo da sala grande.
— Mestre — balbuciou ele. — Monsenhor... Sire... Como vos devo chamar? — disse ele por fim, chegado ao ponto culminante do seu crescendo e não sabendo já como subir ou descer.
— Monsenhor, Majestade, ou camarada, chama-me como quiseres. Despacha-te. Que tens a dizer em tua defesa?
— Em tua defesa ? — pensou Gringoire. — Não gosto disso. — respondeu pois gaguejando: — Eu sou aquele que esta manhã...
— Pelos cornos do Diabo! — interrompeu Clopin. — O teu nome, maroto, e mais nada. Ouve, tu estás perante três poderosos soberanos; eu, Clopin Trouillefou, rei de Tunes, sucessor do grande Coèsre, supremo suserano do rei do calão; Matias Hungadi Spicali, duque do Egito e da Boémia, aquele figo seco que tu acolá vês com uma rodilha à volta da cabeça; Guilherme Rousteau, imperador da Galileia, aquele gordo. Somos os teus juízes. Entraste no reino do calão sem a ele pertenceres; violaste os privilégios dos nossos domínios. Deves ser castigado, a menos que não sejas ladrão, mendigo ou vagabundo. És alguma destas coisas? Justifica-te, pois; diz lá as tuas qualidades.
— Infelizmente — retorquiu Gringoire —, não tenho nenhuma dessas honras. Sou aquele autor...
— Basta — atalhou Troillefou, sem o deixar acabar. — Vais ser enforcado. Uma coisa simplicíssima, meu amigo. Anda lá, reparte alegremente os teus farrapos com essas meninas. Mando enforcar-te para divertir os amigos a quem vais dar a tua bolsa para beberem uma pinga. Se tens alguma momice a fazer, há lá em baixo, num púlpito, um excelente Deus Padre, de pedra, roubado em S. Pierre de Bois. Tens quatro minutos para lhe atirares com a alma à cabeça.
Era formidável, aquela arenga.
— Bem dito, pela minha salvação! Clopin Trouillefou prega como um padre santo! — bradou o imperador da Galileia, quebrando a caneca para calçar a mesa.
— Senhores imperadores e reis! — disse, com sangue-frio, Gringoire (porque não sei como lhe veio o ânimo que o fazia falar resolutamente). — Não pensem nisso; eu chamo-me Pierre Gringoire e sou aquele poeta de quem esta manhã se apresentou um mistério na grande sala do Palácio.
— Ah! És tu, mestre! — disse Clopin. — Eu também estava. E então, camarada, porque nos fizeste aborrecer de manhã é motivo para não seres enforcado à noite?
«há de custar a livrar-me desta», pensou Gringoire.
Tentou, por isso, mais um esforço.
— Eu não sei por que razão — disse ele — é que os poetas não são classificados como vagabundos. Vagabundo foi Esopo; mendigo foi Homero; ladrão, era Mercúrio...
Clopin interrompeu-o:
— Parece que queres intrujar-nos com esse teu palavreado. Deixa-te enforcar e não gastes feitios.
— Perdão, senhor rei de Tunes! — replicou Gringoire, disputando o terreno palmo a palmo. — A coisa vale a pena... Um momento só... Ouvi-me... Não me condeneis sem me ouvir... a sua desgraçada voz, efetivamente, era coberta pela berraria que à roda dele se fazia.
No entanto, Clopin Trouillefou pareceu conferenciar um momento com o duque do Egito e com o imperador da Galileia, que estava completamente bêbedo. Depois gritou, de mau humor:
— Silêncio!
Fez um sinal, e logo o duque, o imperador, os mendigos e os leprosos, vieram postar-se à volta dele, em forma de ferradura, da qual Gringoire, sempre brutalmente agarrado, ocupava o centro. Era um semicírculo de farrapos, de andrajos, de lantejoulas, de forcados, de machados, de pernas cambaleantes, de gordos braços nus, de caras sórdidas, sem expressão, idiotas. No meio desta távola redonda de velhacos, Clopin Trouillefou, como doge deste senado, como rei desta câmara de pares, como papa deste conclave, exercia o seu império, primeiro, de toda a altura do seu tonel, depois, com não sei que ar altivo, feroz, temível, que lhe animava a pupila e que corrigia no seu perfil selvagem o tipo bestial da raça vagabunda. Dir-se-ia uma cabeça desgrenhada entre trombas de javalis.
— Ouve lá — disse ele a Gringoire, acariciando o queixo disforme com a mão calosa. — Não vejo razão para que não sejas enforcado. É verdade que parece que tens nisso repugnância, o que se explica facilmente. Afinal de contas, não te queremos mal e vamos propor-te um meio de saíres presentemente destas talas. Queres ser dos nossos?
Pode julgar-se o efeito que tal proposta fez em Gringoire, que via a vida a fugir-lhe e que começava a desesperar. Agarrou-se a ela com unhas e dentes.
— Pois decerto que quero — disse ele.
— Estás disposto — continuou Clopin — a alistar-te?
— Sem hesitar — respondeu Gringoire.
— Reconheces-te vassalo do reino do calão ?
— Sim.
— Vagabundo?
— Sim.
— De alma e coração?
— De alma e coração.
— Tenho a observar-te — continuou o rei — que nem por isso deixarás de ser enforcado.
— Diabo! — disse o poeta.
— A diferença está unicamente — continuou Clopin no mesmo tom — em que serás enforcado mais tarde, à custa desta boa cidade de Paris, numa bela forca de pedra e por gente honrada. É uma consolação.
— Assim é — confirmou Gringoire.
— Ainda há outras vantagens. Na tua qualidade nova, não tens a pagar nem custas, nem pobres, nem lanternas, a que estão sujeitos os burgueses de Paris.
— Estimo — disse o poeta. — Estou por tudo. Fico sendo vagabundo, ladrão, tudo o que quiserdes; e depois eu já era tudo isso, senhor rei de Tunes, porque sou filósofo, como sabeis.
— Por quem me tomas tu, ó meu amigo? Eu já nem mesmo roubo, estou acima disso, mato. Corta-gasganetes, sim; corta-bolsas, não.
Gringoire procurou meter uma desculpa boa entre aquelas breves palavras que a cólera mais e mais precipitava.
— Peço-vos perdão, monsenhor.
— O que eu te digo — continuou Clopin com violência —, é que não sou judeu, e que te mandarei enforcar, sinagogo do inferno! Junto com esse traste que está ao pé de ti e que espero ver ainda um dia pregado num balcão como moeda falsa que é.
E ao dizer isto, designava com o dedo o judeu húngaro, baixo e barbudo que se acercava de Gringoire com o seu Facitote caritatem, e que não compreendendo outra língua, via com surpresa o mau humor do rei de Tunes despejar-se sobre ele. Afinal monsenhor Clopin sossegou.
— Patife — disse ele ao nosso poeta — queres ser então dos nossos?
— Quero — respondeu o pobre Gringoire.
— Querer não é tudo — observou o desabrido Clopin — boa vontade não aduba panela e só serve para ganhar o paraíso: ora, paraíso e calão são duas coisas diferentes. Para entrares para o calão, é preciso provares que serves para alguma coisa e por isso tens de trabalhar com o manequim.
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