— Diabo do ciclope corcunda! — resmungou por entre os dentes.
E quis levantar-se. Mas estava muito aturdido e magoado demais; forçoso lhe foi deixar-se ficar. De resto tinha a mão livre: tapou o nariz e resignou-se.
«A lama de Paris», pensou ele, «é, na verdade, particularmente malcheirosa.»
Veio-lhe subitamente a lembrança do arcediago Cláudio Frollo ao seu espírito. Lembrou-se da cena violenta que acabara de entrever; da cigana que se debatia com dois homens, de que Quasímodo tinha um companheiro; e o rosto lúgubre e altivo do arcediago passou confusamente na sua memória.
«Seria bem estranho!», pensou ele.
E pôs-se a construir, com estes dados e com esta base, o fantástico edifício das hipóteses, esse castelo de cartas dos filósofos; depois, de repente, voltando à triste realidade:
— Ah! Mas eu vou ficar gelado! — exclamou ele.
O lugar que ocupava tornava-se, efetivamente, cada vez menos suportável. Cada molécula da água da regueira, tirava uma molécula de calor que irradiava nos rins de Gringoire, e o equilíbrio entre a temperatura do seu corpo e a temperatura da regueira começava a estabelecer-se de maneira bem rude.
Uma preocupação de espécie bastante diversa veio, de repente, assaltá-lo.
Um grupo de rapazes, desses pequenos selvagens de pé descalço, que em todos os tempos tem batido as calçadas de Paris com o eterno nome de garotos e que, quando nós éramos rapazes também nos atiravam pedras a nós, de tarde, ao sair da aula, porque não tínhamos as calças rotas, um enxame desses juvenis velhacos dirigiu-se, a correr, para o sítio onde jazia Gringoire, com gargalhadas e gritos que pareciam importar-se muito pouco com o sono dos vizinhos. Arrastavam atrás deles não sei que informe saco; só o ruído dos seus tamancos chegava para despertar um morto. Gringoire, que ainda o não estava completamente, levantou-se a meio.
— Olá, Hennequin Dandèche! Olá, Jehan Pincebourde! — gritavam desaforadamente. — O velho Eustáquio Moubon, o ferro-velho da esquina, morreu! Temos aqui a enxerga e vamos fazer com ela uma bela fogueira. Hoje é o dia dos Flamengos.
E nisto, atiraram com a enxerga precisamente sobre Gringoire, ao pé do qual tinham chegado sem que o vissem. Ao mesmo tempo, um deles pegou num punhado de palha e foi acendê-la na mecha da imagem da bendita Virgem Maria.
— Pela morte de Cristo! — rosnou Gringoire. — Então não vou agora ter calor demais?
O momento era crítico. Ia ficar preso entre o fogo e a água; fez um esforço sobrenatural, um esforço de moedeiro falso a quem vão assar e que trata de fugir. Pôs-se de pé, atirou a enxerga sobre os garotos e fugiu.
— Virgem Santa! — gritaram os rapazes. — É o mercador que ressuscita!
E largaram também a fugir.
A enxerga do velho Moubon ficou dona daquele campo de batalha.
Capítulo 6 — A Bilha Quebrada
Depois de ter corrido à desfilada durante algum tempo, sem saber por onde, batendo com a cabeça em muita esquina de rua, saltando muitas valetas, atravessando muitas vielas, muitos becos, muitas travessas, procurando fuga e passagem através de todos os meandros das velhas ruas dos Halles, o nosso poeta parou de repente, de cansaço primeiro, depois de algum modo filado por um dilema que acabava de lhe surgir no espírito.
— Parece-me, mestre Pierre Gringoire — disse ele a si próprio, apoiando o dedo na testa — que andais a correr como um doido. Os velhacos dos rapazes tiveram tanto medo de vós como vós deles. Parece-me, digo-vos, que ouvistes o ruído dos seus tamancos que fugiam para o sul, enquanto vós fugíeis para o norte. Ora, de duas coisas, uma: ou eles fugiram, e então a enxerga, que eles deveram esquecer no seu terror, é precisamente o leito hospitaleiro atrás do qual vós correis desde pela manhã e que a Virgem vos envia milagrosamente para vos recompensar de terdes feito em sua honra um mistério acompanhado de triunfos e momices; ou os rapazes não fugiram, e nesse caso puseram fogo à enxerga, e aí está justamente o excelente fogo de que tendes necessidade para vos regozijar, secar e aquecer. Nos dois casos, bom fogo ou boa cama, a enxerga é um presente do céu. A bendita Virgem Maria, que está à esquina da rua Mauconseil, não fez morrer Eustáquio Moubon senão para isso; e sois doido em assim fugir, deitando as tripas pela boca fora, como um picardo diante de um francês, deixando atrás de vós o que procurais adiante; sois um doido!
Voltou então sobre os seus passos e, orientando-se e farejando, com o nariz ao vento e as orelhas à espreita, esforçou-se por encontrar a bem-aventurada enxerga, mas debalde. Eram só interseções de casas, becos, pés de pato, no meio dos quais, a cada instante, hesitava e duvidava, mais embaraçado e mais enviscado nesse enredado de vielas escuras, do que o ficaria no labirinto do palácio das Tournelles. Perdeu a paciência, e bradou solenemente:
— Malditas sejam as encruzilhadas! Foi o Diabo que as fez, à semelhança do seu forcado!
Esta exclamação aliviou-o um pouco e uma espécie de reflexo avermelhado que descobriu ao cabo de uma estreita e comprida viela, acabou de reanimar o seu ânimo abatido.
— Deus! — disse ele. — É acolá em baixo! É a minha enxerga a arder.
Mal dera alguns passos na comprida viela por onde se metera, viela em declive, não calçada e de mais a mais lamacenta e inclinada, logo notou qualquer coisa bastante singular. Não reinava nela a solidão; aqui e ali, em todo o seu cumprimento, rojavam-se não sei que massas vagas e informes, dirigindo-se todas para o clarão que tremia no fim da rua, como esses pesados insetos que se arrastam de noite, de erva em erva, em direção à fogueira que o pastor acende.
Predispõe a aventuras a leveza de algibeiras. Gringoire continuou, pois, a avançar, e em breve alcançou uma dessas larvas que se arrastava mais preguiçosamente no encalço das outras. Abeirando-se dela, viu que era apenas um miserável estropiado que caminhava servindo-se das mãos, como um caranguejo ao qual deixassem apenas duas pernas. Na ocasião em que passava junto dessa espécie de aranha com rosto de homem, disse-lhe ela em voz lamuriosa:
— La buona mancia, signor! La buona mancia!
— Que os diabos te levem! — disse Gringoire. — E eu contigo, se sei o que tu queres dizer!
E passou além.
Encontrou uma outra dessas massas ambulantes e examinou-a. Era um inválido, coxo e maneta, e tão coxo e tão maneta que o sistema complicado de muletas e pernas de pau que o sustentava lhe dava o aspeto de um andaime a caminhar. Esse andaime vivo saudou-o quando ele passava, mas levando o chapéu à altura do queixo de Gringoire, como uma bacia de barba e gritando-lhe aos ouvidos:
— Señor caballero, para comprar un pedazo de pan!
— Parece-me — disse Gringoire —, que este também fala; mas, se ele se entende é mais feliz do que eu.
Depois, batendo na testa onde subitamente surgira uma ideia: — A propósito, que diabo queriam eles dizer esta manhã com a sua Esmeralda ?
Quis estugar o passo, mas pela terceira vez qualquer coisa lhe tolheu o caminho. Esta qualquer coisa, era um cego, baixo, com cara de judeu, muito barbudo, que remando no espaço com um cajado e rebocado por um cão lhe disse em voz fanhosa e com acento húngaro: Facitote caritatem!
— Ora, ainda bem! — exclamou Pierre Gringoire. — Até que encontro um que fala língua de cristão. Devo ter cara de um sujeito muito esmoler para que me peçam esmola no estado de magreza em que tenho a bolsa. Meu amigo (e voltou-se para o cego) vendi na semana passada a última camisa.
E dizendo isto, voltou as costas ao cego e prosseguiu o seu caminho. Mas o cego alongou o passo medindo-o pelo dele e surgiram também o inválido e o estropiado, todos desembaraçados, com grande ruído de escudelas e muletas batendo no chão. Depois os três, largando atrás do pobre Gringoire recomeçaram a ladainha:
Читать дальше