Capítulo 4 — Inconvenientes de Seguiras Mulheres Bonitas de Noite pelas Ruas
Gringoire, pelo sim pelo não, pôs-se a seguir a cigana. Viu que entrara com a cabra pela rua da Coutellerie ; foi também pela rua da Coutellerie.
— E por que não? — disse consigo.
Caminhava pois todo pensativo atrás da moça que estugava o passo e fazia trotar a sua bonita cabra ao ver recolher os burgueses e fechar as tabernas, únicas lojas nesse dia abertas.
— O que é verdade — pensava pouco mais ou menos ele — É que ela há de alojar-se algures! Quem sabe?...
Havia nos pontos respetivos de que ele fazia acompanhar esta reticência no seu espírito, não sei que ideias assaz graciosas.
No entanto, de tempos a tempos, ao passar por diante dos últimos grupos de burgueses que fechavam as portas, apanhava algumas frases soltas das suas conversas que vinham quebrar o encanto das suas risonhas hipóteses.
Aqui eram dois velhos que se atracavam.
— Mestre Thibaut Fernicle, sabeis que faz frio?
Gringoire sabia isso perfeitamente desde o princípio do inverno.
— É verdade, e muito, mestre Bonifácio Disome! Iremos nós ter um inverno como há três anos, em 80, em que a lenha custava oito sols a carga?
— Ora! Isso não é nada mestre Thibaut, ao pé do inverno de 1407 em que caiu neve desde Saint-Martin até à Candelária! E com tal fúria que a pena do escrivão do parlamento gelava, na sala do tribunal, de três em três palavras! Até o registo da justiça teve de ser interrompido.
Ali, eram umas vizinhas à janela com as suas candeias que o nevoeiro fazia crepitar.
— O seu marido contou-lhe a desgraça que aconteceu, mademoiselle La Boudraque?
— Não. Então que foi, mademoiselle Turquant?
— Foi o cavalo de M. Gilles Godin, o notário do Châtelet, que se espantou com os flamengos e com a procissão e atropelou mestre Philippot Avrillot, oblat dos Celestinos.
— Sim?
— É como lhe digo.
— Um cavalo burguês! É um pouco forte. Se fosse um cavalo de cavalaria, ainda vá!
E as janelas fechavam-se. Mas Gringoire não deixava porém de perder o fio das suas ideias.
Felizmente encontrava-o depressa e reatava-o sem custo, graças à cigana, graças a Djali que continuava a caminhar diante dele; duas finas, delicadas, e encantadoras criaturas, de quem admirava os pequenos pés, as lindas formas, as graciosas maneiras confundindo-as quase na sua contemplação; pela inteligência e boa amizade, pela ligeireza, agilidade e destreza do andar.
No entanto as ruas tornavam-se a cada momento mais negras e mais desertas. O toque de recolher fora já há muito dado e começava a ver-se raramente na calçada, uma luz nas janelas. Gringoire embrenhara-se, atrás da egípcia, nesse dédalo inextricável de vielas, de travessas e de becos, que cerca o antigo sepulcro dos Santos Inocentes e que se assemelha a um novelo de fio emaranhado por um gato.
— Aqui estão umas ruas que têm bem pouca lógica! — dizia Gringoire, perdido nesses mil circuitos que vinham dar incessantemente sobre si mesmos, mas por onde a moça seguia um caminho que parecia bem conhecido, sem hesitar e num passo cada vez mais rápido. Quanto a ele, ignoraria perfeitamente onde estava, se não avistasse ao passar, dobrando a esquina de uma rua, a massa octógona do pelourinho dos Halles, cujo remate vazado destacava vivamente as suas linhas negras sobre uma janela ainda iluminada na rua Verdelet.
Havia alguns instantes que ele despertara a atenção da moça, que já tinha por várias vezes voltado, inquieta, a cabeça; ela tinha até uma vez estacado, aproveitando-se de uma padaria entreaberta, para o mirar atentamente, da cabeça até aos pés; depois, terminado esse exame, Gringoire viu-a também fazer esse trejeitozinho que ele já notara e seguir o seu caminho.
O tal trejeitozinho deu que pensar a Gringoire. Havia certamente desdém e motejo nessa graciosa careta. Por isso começara a abaixar a cabeça, a contar as pedras e a seguir a moça um pouco mais de longe, quando, ao voltar de uma rua que acabava de lha fazer perder de vista, ouviu dar um grito agudo. Estugou por isso o passo.
As trevas enchiam a rua. No entanto uma estopa embebida em azeite, que ardia numa gaiola de ferro aos pés de uma imagem da Virgem, ao canto da rua, permitiu a Gringoire distinguir a cigana a debater-se nos braços de dois homens que se esforçavam por lhe abafar os gritos. A pobre cabrita toda assustada, baixava as pontas, e balia.
— A nós, senhores da ronda! — bradou Gringoire e avançou com valentia.
Um dos homens que segurava a moça voltou-se para ele. Era a terrível cara de Quasímodo.
Gringoire não fugiu, mas não deu mais um passo.
Quasímodo dirigiu-se para ele e atirou-o por terra com as costas da mão e perdeu-se rapidamente na sombra, levando a cigana, dobrada sobre um dos seus braços como uma cinta de seda. O seu companheiro seguia-o e atrás de todos corria a pobre cabra com o seu queixoso balir.
— Acudam, que me matam! — gritava a cigana.
— Façam alto, miseráveis, e larguem aí já essa mulher! — disse de repente, com voz de trovão, um cavaleiro que desembocou repentinamente da travessa vizinha.
Era um capitão dos archeiros das ordenanças do rei armado dos pés até à cabeça, e de montante em punho.
Arrancou a cigana dos braços de Quasímodo estupefacto, atravessou-a na sela e no momento em que o terrível corcunda, voltando a si da surpresa, se precipitava sobre ele, para retomar a sua presa, quinze ou dezasseis archeiros, que seguiam de perto o seu capitão, apareceram de espada desembainhada. Era uma esquadra de ordenanças do rei que andava na ronda.
Cercaram Quasímodo, agarraram-no, prenderam-no; ele rugia, espumava, mordia; e se fosse dia claro, sem dúvida alguma, só o seu rosto, tornado mais hediondo pela cólera, seria capaz de pôr em fuga toda a esquadra. Mas a noite desarmava-o da sua mais terrível arma, da fealdade.
O seu companheiro desaparecera na luta.
A cigana empertigou-se graciosamente sobre a sela do oficial, apoiou as mãos nos ombros dele e mirou-o atentamente alguns segundos, como encantada das suas boas feições e do bom socorro que acabava de prestar-lhe. Depois, quebrando a primeiro o silêncio, disse-lhe, tornando ainda mais doce a sua voz:
— Como vos chamais, senhor gendarme?
— Capitão Febo de Châteaupers, para vos servir, minha bela! — respondeu o oficial, perfilando-se.
— Obrigado! — disse ela.
E, enquanto o capitão Febo cofiava o seu bigode à borgonhesa, ela deixou-se escorregar abaixo do cavalo, como uma flecha que cai no chão e fugiu.
Um relâmpago não se esvaneceria mais depressa.
— Pelo umbigo do papa! — disse o capitão, mandando apertar as correias de Quasímodo. — Antes queria ter ficado com a mulher.
— Então que quer, capitão? — disse um gendarme. — A toutinegra bateu as asas, só ficou o morcego.
Capítulo 5 — Continuação dos Inconvenientes
Gringoire, muito aturdido da queda, ficara estatelado no chão, diante da imagem da Virgem na esquina da rua; depois muito lentamente sentiu que recobrava os sentidos; primeiro permaneceu por alguns minutos flutuando numa espécie de cismar meio sonolento e não sem doçura, em que as aéreas figuras da cigana e da cabra se casavam com o peso do punho de Quasímodo. Esse estado durou pouco. Uma impressão bastante viva de frio na parte do corpo que se achava em contacto com o chão, despertou-o de repente e fez-lhe voltar o espírito à superfície.
— De onde me vem esta frescura? — disse ele, bruscamente.
Descobriu então que estava nem mais nem menos do que no meio de uma regueira.
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