— Caritatem! — cantava o cego.
— La buona mancia! — cantava o estropiado.
E o coxo continuava no mesmo tom repetindo:
— Un pedazo de pan!
Gringoire tapou os ouvidos.
— Oh, que torre de Babel! — bradou ele.
E largou a correr. E o cego, e o coxo, e o estropiado largaram também atrás.
Depois à medida que avançava pela rua, estropiados, cegos, coxos, pulularam em volta dele, e manetas e tortos, e leprosos, uns a sair das casas, outros dos becos, estes dos respiradouros das adegas, ululando, mugindo, ganindo, todos coxeando, aos encontrões, precipitando-se para a fogueira, espojando-se na lama como lesmas depois da chuva.
Gringoire, sempre acompanhado dos seus três perseguidores, e não sabendo o que ia ser feito dele, caminhava espavorido pelo meio dos outros, desviando-se dos coxos, saltando por cima dos estropiados, tropeçando nesse formigueiro de disformidades, como aquele capitão inglês que caiu num viveiro de caranguejos.
Veio-lhe à ideia voltar para trás. Mas já era tarde. Toda aquela legião se condensara e os seus três mendigos não o largavam. Continuou, pois, impelido a um tempo por aquela vaga terrível, pelo medo e pela vertigem que lhe fazia de tudo aquilo uma espécie de sonho terrível.
Afinal chegou à extremidade da rua. Desembocava numa praça imensa, onde mil luzes dispersas cintilavam no vago nevoeiro da noite. Gringoire fugiu para lá na esperança de escapar pela ligeireza das pernas, dos três espectros enfermos que se tinham agarrado a ele.
— Adonde vas, hombre? — gritou o paralítico atirando fora as muletas e correndo atrás com as melhores pernas que em Paris poderiam aparecer para o passo geométrico. E o estropiado, de pé e todo direito, enfiou na cabeça de Gringoire a sua pesada tigela chapeada de ferro e o cego olhou-o de frente com olhos coruscantes.
— Onde estou eu? — perguntou o poeta aterrado.
— No pátio dos Milagres — respondeu um quarto espectro que se tinha acercado.
— Pela salvação da minha alma — replicou Gringoire. — Bem vejo os cegos com vista e os coxos com pernas, mas onde está o Salvador?
Responderam-lhe com uma gargalhada sinistra.
O pobre poeta lançou os olhos em redor. Estava efetivamente nesse terrível Pátio dos Milagres onde nunca um homem de bem entrava a semelhante hora; círculo mágico onde os oficiais de Châtelet e os aguazis do prebostado que se arriscavam a transpô-lo, desapareciam em migalhas; cidade dos ladrões, hedionda verruga no rosto de Paris; esgoto de onde saía todas as manhãs, e onde se recolhia todas as noites, esse rio de vícios, de mendicidade e de vagabundagem sempre transbordando nas ruas das capitais; colmeia monstruosa onde todos os zangãos da ordem social vinham depor a sua colheita; asilo monstruoso onde o boémio, o frade que abandonou o hábito, o estudante que abandonou as aulas, os birbantes de todas as nações, espanhóis, italianos; de todas as religiões, judeus, cristãos, maometanos, idólatras, cobertos de chagas fingidas, mendigando de dia, transformando-se de noite em bandidos; imenso guarda-roupa, numa palavra, onde se vestiam e despiam naquela época os atores dessa comédia eterna que o roubo, a prostituição e o assassínio representam no palco de Paris.
Era uma praça vasta, irregular e mal calçada como todas as praças de Paris desse tempo. Aqui e ali brilhavam fogueiras à roda das quais formigavam grupos extravagantes. Tudo isso se movia, se agitava, gritava. Ouviam-se gargalhadas agudas, vagidos de crianças, vozes de mulheres. As mãos, as cabeças dessa multidão, negras sobre um fundo luminoso, denunciavam mil gestos bizarros.
Por momentos, no chão, onde a claridade das fogueiras tremia, de mistura com grandes sombras indefinidas, podia ver-se passar um cão que se assemelhava a um homem, um homem que se assemelhava a um cão. Os limites das raças e das espécies pareciam desaparecer neste recinto como num pandemonium. Homens, mulheres, animais, idade, sexo, saúde, doenças, tudo parecia existir em comum nesse povo; tudo se misturava, se ajuntava, se confundia, se sobrepunha; todos participavam de tudo.
Gringoire, cada vez mais transido de medo, agarrado pelos três mendigos como por três tenazes, ensurdecido por um sem-número de outras caras que se encarneiravam e latiam em volta dele, o desventurado Gringoire diligenciava recuperar a sua presença de espírito, lembrar-se se aquele dia era sábado. Mas eram baldados os seus esforços; partira-se o fio da sua memória e do seu pensamento; e duvidando de tudo, flutuando entre o que via e o que sentia, formulava a si próprio esta insolúvel questão:
— Se existo, isto é verdade? Se isto é verdade, existo?
Neste momento elevou-se um brado que dominou a tumultuosa gritaria que o cercava:
— Levemo-lo ao rei! Levemo-lo ao rei!
— Virgem Santa! — murmurou Gringoire. — O rei desta gente deve ser algum bode.
— Ao rei! Ao rei! — repetiram todas as vozes.
E arrastavam-no. Todos queriam pousar sobre ele as garras. Mas os três mendigos não largavam a presa e arrancavam-no aos outros, bramindo:
— É nosso!
O gibão já doente, do poeta, rendeu nesta luta o último suspiro.
Ao atravessar a horrível praça dissipou-se-lhe a vertigem. Ao cabo de alguns passos, voltara-lhe o sentimento da realidade. Começava a acostumar-se à atmosfera do lugar. O Pátio dos Milagres não era mais do que uma taberna, mas uma taberna de bandidos, tão vermelha de sangue como de vinho.
O espetáculo que se lhe ofereceu aos olhos, quando a andrajosa escolta chegou ao termo da sua carreira, não era próprio para inspirar poesia, mesmo que essa poesia fosse a do inferno. Era mais do que nunca a prosaica e brutal realidade da taberna.
À volta de uma grande fogueira a arder sobre uma larga pedra redonda e cujas chamas penetravam por entre as hastes avermelhadas de uma trempe, na ocasião devoluta, algumas mesas carunchosas estavam postadas ao acaso. Sobre essas mesas, nalguns copos escorria o vinho e a cerveja e à volta desses copos agrupavam-se um sem-número de caras báquias, purpureadas pelo fogo e pelo vinho. Um soldado fingido, um intrujão, como se diz em calão, desfazia, assobiando, as ligaduras de uma ferida simulada e punha à vontade o joelho são e vigoroso, comprimido desde pela manhã por aquele aparelho. Um pustulento, ao inverso, preparava com caledónia e com sangue de boi a sua perna de Lázaro para o dia seguinte. Duas mesas mais longe, um conchudo com o seu trajo completo de peregrino, soletrava a Salve-rainha, sem se esquecer da salmodia e do tom fanhoso. Mais além, um novato tomava lições de epilepsia com um epilético fingido que lhe ensinava a arte de fazer espuma mascando um pedaço de sabão. Ao lado dele, um hidrópico desinchava e fazia tapar o nariz a quatro ou cinco ladras que disputavam entre si, assentadas à mesma mesa, uma criança que tinham roubado.
Apenas se ouviam gargalhadas e canções obscenas.
Cada um tratava de si, resmungando e praguejando, sem fazer caso do vizinho. Os copos tocavam-se, as questões nasciam do toque dos copos e os copos rachados faziam despedaçar os andrajos.
Perto da fogueira havia um tonel. Sobre esse tonel um mendigo. Era o rei no seu trono.
Os três que seguravam Gringoire conduziram-no para esse tonel e em toda aquela bacanal fez-se um momento de silêncio.
Gringoire não ousava respirar nem levantar os olhos.
— Hombre, quita tu sombrero! — disse um dos três patifes que dele tinham tomado conta; e antes que o pobre tivesse compreendido o que isso queria dizer, já o outro lhe tinha tirado o chapéu. Miserável chapéu, é verdade, mas que ainda assim servia para um dia de sol ou de chuva; Gringoire suspirou.
Читать дальше