À guisa de resposta, Conina montou no cavalo maior, que parecia pertencer a um soldado. Havia armas penduradas por todos os lados.
Sem jeito, Creosoto subiu no segundo cavalo, um baio arisco, e suspirou:
— Ela está com cara de caixa de correio — avisou. — Eu faria o que está mandando.
Desconfiado, Nijel estudou os outros dois cavalos. Um deles era imenso e extremamente branco — não o branco amarelado da maioria dos cavalos, mas um branco ebúrneo e translúcido, a que Nijel sentiu vontade inconsciente de chamar de “sudário”. Também lhe deu a nítida sensação de ser mais inteligente do que ele.
Escolheu o outro. Era um pouco magro, mas dócil. E o rapaz conseguiu montar depois de apenas duas tentativas.
Eles partiram.
O barulho dos cascos mal chegou a penetrar na escuridão da taverna. O dono do local se movimentava como em sonho. Sabia que tinha clientes, havia até conversado com eles e podia mesmo vê-los sentados em torno da mesa próxima à lareira. Mas, se lhe pedissem que descrevesse com quem havia conversado ou o que tinha visto, teria ficado desorientado. Isso se dá porque o cérebro humano é excelente para bloquear coisas de que não quer saber. Naquele momento, o dele poderia guardar um cofre de banco.
E as bebidas! Da maioria delas, ele nunca tinha ouvido falar, mas as garrafas surgiam nas prateleiras, sobre os barris de cerveja. O problema era que, sempre que tentava pensar no assunto, as idéias se perdiam…
Os vultos em torno da mesa ergueram as cartas.
Um deles levantou a mão. Fica na extremidade do braço e tem cinco dedos, disse a mente do dono da taverna. Deve ser mão.
Uma coisa que o cérebro dele não conseguia bloquear era o som das vozes. Aquela ali soava como se alguém estivesse batendo em pedra com uma barra de chumbo.
— PESSOA DO BAR.
O dono da taverna soltou um gemido. As lanças térmicas do pânico abriam caminho nas portas de aço de sua mente.
— VEJAMOS. ESSE ERA… COMO SE CHAMA, MESMO?
— Bloody mary.
Aquela voz fazia um mero pedido de bebidas parecer declaração de guerra. — AH.É. E…
— O meu era martini — disse Peste.
— UM MARTINI.
— Com azeitona.
— ÓTIMO — mentiu a voz pesada. — PARA MIM, UM VINHO DO PORTO E — ele fitou o quarto membro do grupo e suspirou — É MELHOR VOCÊ TRAZER OUTRA TIGELA DE AMENDOIM.
A cerca de trezentos metros dali, os ladrões de cavalos tentavam se acostumar à nova experiência.
— Sem dúvida, uma viagem tranqüila — arriscou Nijel, afinal.
— E uma vista gloriosa — concordou Creosoto, a voz perdida no vento.
— Mas eu continuo me perguntando — argumentou Nijel — se fizemos a coisa certa.
— Estamos andando, não estamos? — irritou-se Conina. — Deixe de ser chato.
— Só que, bem, ver essas nuvens… esses cúmulos de cima, é…
— Cale a boca.
— Desculpe.
— De qualquer maneira, são estratos. No máximo, estratos-cúmulos.
— Entendo — disse Nijel, com tristeza.
— Faz alguma diferença? — perguntou Creosoto, que se encontrava deitado sobre o pescoço do cavalo, de olhos fechados.
— Uns trezentos metros.
— Ah.
— Talvez duzentos e cinqüenta — admitiu Conina.
— Ah.
A torre da fonticeria vibrava. Fumaça colorida corria pelos cômodos abobadados e corredores reluzentes. Na grande sala do cume, onde o ar estava denso, escuro e cheirava a lata queimada, vários magos haviam desmaiado por causa do simples esforço mental da luta. Mas muitos resistiam. Estavam sentados num grande círculo, concentrados.
Era possível ver o tremor da fonticeria em estado bruto saindo da vara, nas mãos de Coin, e lançando-se para o centro do octograma.
Formas bizarras surgiam por um instante, e depois desapareciam. Ali, o tecido da própria realidade era passado a ferro.
Carding estremeceu e afastou o olhar, com medo de acabar vendo alguma coisa que realmente não pudesse ignorar.
Os magos sêniores sobreviventes tinham um simulacro do Disco flutuando à sua frente. Quando Carding voltou a olhá-lo, o pequeno brilho vermelho sobre a cidade de Quirm cintilou e se apagou.
O ar rangeu.
— Lá se vai Quirm — murmurou Carding.
— Agora, só falta Al Khali — disse um dos outros.
— Ali há muito poder.
Taciturno, Carding assentiu. Sempre gostara muito de Quirm, que era… que havia sido uma cidadezinha deliciosa, banhada pelo Oceano Periférico.
Lembrou vagamente a ocasião em que fora levado para lá, quando pequeno. Por um instante, contemplou o passado com tristeza. Havia gerânios silvestres, recordou, enchendo as ruas inclinadas de perfume almiscarado.
— Crescendo nas paredes — comentou, em voz alta. — Rosa. Eram rosa.
Os outros magos lançaram-lhe olhares melindrados. Um ou dois, de tendência particularmente paranóica, até mesmo para os padrões de um mago, olharam desconfiados para as paredes.
— Você está bem? — perguntou um deles.
— Hum? — disse Carding. — Ah. Sim. Desculpe. Estava longe daqui.
Ele se voltou para Coin, que se encontrava sentado no círculo com a vara apoiada sobre os joelhos. O menino parecia dormir. Talvez estivesse. Mas, no fundo de sua alma atormentada, Carding sabia que a vara não dormia. Ela o observava, testava sua mente.
E sabia. Sabia até dos gerânios rosa.
— Eu não queria que acabasse assim — murmurou. — A gente só queria um pouco de respeito.
— Tem certeza de que você está bem?
Carding assentiu vagamente. Quando os colegas voltaram a se concentrar, olhou de esguelha para eles.
De alguma forma, todos os amigos haviam partido. Bem, amigos não. Mago nunca fazia amigos. Pelo menos, não amigos que fossem magos. Era necessária uma palavra diferente. Ah, sim, era isso: inimigos. Mas um tipo muito decente de inimigo. Cavalheiros. A nata da profissão. Não como essa gente, que parecia ter feito carreira depois da chegada do fonticeiro.
Não é só a nata que chega ao topo boiando, refletiu ele, com amargor.
Voltou a atenção para Al Khali, investigando, com o pensamento, ciente de que os magos de lá provavelmente faziam o mesmo, sempre buscando um ponto de vulnerabilidade.
Ele pensou: Será que sou um ponto de vulnerabilidade? Lingote tentou me avisar alguma coisa. Era sobre a vara. O homem deve se apoiar na vara, e não o contrário… E ela conduz o menino… Como eu gostaria de ter escutado Lingote… Está tudo errado, sou um ponto de vulnerabilidade…
Tentou novamente, deslizando nas ondas de energia, permitindo que levassem sua mente à torre inimiga. Até Abrim vinha fazendo uso da fonticeria, e Carding deixou-se adaptar às ondas, insinuando-se por entre as defesas erigidas contra ele.
A imagem do interior da torre de Al Khali surgiu, ganhou foco…
…a Bagagem seguia pelos corredores reluzentes. Tinha muita raiva. Havia sido acordada de sua hibernação, havia sido desprezada, havia sido atacada por uma variedade de criaturas mitológicas e, agora, extintas, estava com dor de cabeça e, naquele momento, ao entrar no salão, finalmente localizava o chapéu. O terrível chapéu, causa de todo o seu sofrimento. Ela avançou decidida…
Examinando a resistência da mente de Abrim, Carding sentiu a atenção do homem vacilar. Por um instante, enxergou através dos olhos do inimigo e divisou a arca se aproximando. Abrim tentou deslocar a concentração e, incapaz de se segurar — como gato quando vê um bicho pequeno e chiante correndo pelo chão —, Carding atacou.
Não com muita força. Não foi necessário. A mente de Abrim tentava equilibrar e canalizar energias imensas, e quase não foi preciso muita pressão para derrubá-lo.
Abrim estendeu os braços para detonar a Bagagem, soltou o começo de um grito e implodiu.
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