— Tudo bem — murmurou ele. — Mas o que eu posso fazer?
— Oook.
O bibliotecário dirigiu a Rincewind um olhar que teria sido exatamente o olhar irônico que se dá por cima de óculos em meia-lua, se estivesse usando óculos em meia-lua, e pegou outro livro.
— Quer dizer, você sabe que eu não sou bom em magia.
— Oook.
— A fonticeria que corre por aí é terrível. E o troço primitivo, lá da aurora dos tempos. Ou, pelo menos, por volta do café-da-manhã.
— Oook.
— Vai destruir tudo, não vai?
— Oook.
— Já é hora de alguém dar um fim a essa fonticeria, não é?
— Oook.
— Só que não pode ser eu. Quando vim para cá, pensei que pudesse fazer alguma coisa, mas aquela torre é enorme! Deve ser à prova de qualquer tipo de magia. Se os magos realmente poderosos não fazem nada a respeito, como é que eu poderia?
— Oook — concordou o bibliotecário, costurando uma lombada partida.
— Acho que alguma outra pessoa deve salvar o mundo, desta vez. Eu não sou bom nisso.
O bibliotecário assentiu, estendeu o braço e tirou o chapéu de Rincewind de sua cabeça.
— Ei! O macaco ignorou-o e pegou uma tesoura.
— Olhe aqui, esse chapéu é meu. Não ouse fazer isso no meu… Ele deu um salto e foi recompensado com um baque na lateral da cabeça, o que o teria deixado perplexo se tivesse tempo para pensar no assunto. O bibliotecário podia parecer um balão trôpego e benévolo, mas, por baixo de toda aquela pele, havia uma estrutura muito bem equilibrada de ossos e músculos, capaz de lançar um punho de dedos calejados através de uma prancha de grossa de madeira. madeira. Chocar-se contra o braço do bibliotecário era como bater numa barra peluda de ferro.
Wuffles começou a pular, latindo de animação.
Rincewind soltou um grito rouco e intraduzível de raiva, suspendeu uma pedra caída como se fosse um porrete, deu alguns passos adiante e ficou completamente imóvel.
O bibliotecário estava agachado, com a tesoura tocando — mas ainda não cortando — o chapéu.
E sorria para Rincewind.
Durante alguns segundos, os dois ficaram parados, como num quadro. O macaco largou a tesoura, limpou várias manchas de poeira imaginária do chapéu, endireitou a ponta e colocou-o na cabeça de Rincewind.
Alguns instantes de pânico depois, Rincewind se deu conta de que estava segurando uma pedra imensa e terrivelmente pesada. Conseguiu jogá-la para o lado antes que ela se recobrasse do susto e lembrasse de cair sobre ele.
— Entendi — disse o mago, encostando-se na parede e massageando o cotovelo. — Tudo isso é para me dizer alguma coisa, não é? Uma lição de moral, para que Rincewind confronte a si mesmo, para que descubra aquilo por que está realmente preparado para lutar. Hein? Foi um truque muito baixo. E vou lhe dizer uma coisa. Se acha que funcionou… — ele segurou a aba do chapéu — se acha que funcionou… Se você acha que eu… Escute aqui… Se acha…
A voz se perdeu no silêncio. Ele encolheu os ombros.
— Tudo bem. Mas o que eu poderia fazer?
O bibliotecário respondeu com um gesto amplo, a sugerir, tão claramente como se houvesse dito “oook”, que Rincewind tinha o chapéu, a biblioteca de livros mágicos e a torre. Isso poderia ser considerado tudo de que um mago necessitava. O macaco, o pequeno terrier com mau hálito e o lagarto no vidro eram extras opcionais.
Rincewind sentiu uma ligeira pressão nos pés. Wuffles, que era lento das idéias, havia cravado as gengivas sem dente no bico da bota de Rincewind e lhe dava uma chupada vigorosa.
Ele pegou o cachorrinho pela nuca e pelo toco peludo que, por falta de palavra melhor, chamava de rabo, e ergueu-o de lado.
— Tudo bem — disse, afinal. — É melhor você me dizer o que anda acontecendo por aqui.
Das Montanhas Carracas, que dão para a imensa e fria Planície Sto, em meio à qual Ankh-Morpork se estende, espalhada como um saco de compras caídas, a vista era sensacional. Raios perdidos da guerra mágica expandiam-se numa nuvem de ar solidificado, dentro da qual cintilavam luzes estranhas.
As estradas que saíam da cidade estavam cheias de refugiados, e todas as hospedarias e tavernas à sua margem encontravam-se lotadas. Ou quase todas.
Ninguém parecia querer parar no pequeno pub, um tanto agradável, instalado entre árvores próximas à estrada de Quirm. Não que tivessem medo de entrar, apenas não podiam notá-lo.
Houve um movimento no ar, a cerca de um quilômetro dali, e três vultos caíram do nada, numa moita de lavanda.
Ficaram estirados sob o sol, entre os ramos perfumados e rompidos, até a sanidade voltar. Creosoto perguntou:
— Onde estamos?
— Tem cheiro de gaveta de roupa íntima — observou Conina.
— Não a minha — contestou Nijel.
Ele se levantou com cuidado e perguntou:
— Alguém viu a lâmpada?
— Esqueça. Deve ter sido trocada por um bar qualquer — respondeu Conina.
Nijel tateou os galhos de lavanda até encontrar um objeto pequeno e metálico.
— Achei! — exclamou ele.
— Não esfregue! — pediram os outros dois, em uníssono.
Seja como for, falaram tarde demais, mas isso não fez muita diferença, porque tudo que aconteceu quando Nijel lhe deu uma leve esfregadela foi o surgimento de algumas palavrinhas vermelhas e esfumaçadas, em pleno ar.
— Oi — leu Nijel, em voz alta. — Não largue a lâmpada, seu pedido é muito importante para nós. Por favor, deixe seu desejo depois do sinal e, em breve, será uma ordem. Enquanto isso, tenha uma boa eternidade. — Ele acrescentou: — Acho que o gênio está realmente sobrecarregado.
Conina não disse nada. Estava olhando a tempestade escaldante de magia. De vez em quando, parte dela se desprendia e voava para alguma torre distante. A menina estremeceu, apesar do calor crescente do dia.
— Temos de chegar lá o mais depressa possível — alertou. — É muito importante.
— Por quê? — indagou Creosoto.
Uma taça de vinho não havia lhe restaurado a antiga natureza despreocupada.
Conina abriu a boca e — o que era bem incomum para ela — fechou-a novamente. Não havia como explicar que todos os genes de seu corpo a impeliam adiante, afirmando que ela deveria participar. Visões de espadas e bolas cheias de pontas presas a correntes não paravam de invadir os salões de beleza da sua consciência.
Nijel, por outro lado, não sentia nenhum desses ímpetos. Tudo de que dispunha para movê-lo adiante era a imaginação, mas ele a tinha o bastante para impulsionar um navio de guerra de tamanho médio. Mirou a cidade com o que teria sido, caso tivesse queixo, uma fisionomia de determinação.
Creosoto deu-se conta de que estava em desvantagem.
— Tem bebida lá? — perguntou.
— Muita — respondeu Nijel.
— Não está mal para começar — avaliou o xerinfe. — Tudo bem, avante, ó filha dos seios de pêssego…
— E chega de poesia.
Eles se desembaraçaram da moita e desceram a encosta até a estrada que, pouco adiante, passava pela taverna mencionada acima ou, como Creosoto insistia em chamá-la, caravançará.
Hesitaram em entrar. O lugar não parecia querer clientes. Mas Conina, que por educação e criação costumava verificar os fundos das casas, achou quatro cavalos amarrados no quintal.
Os três examinaram os animais com atenção.
— Seria roubo — advertiu Nijel.
Conina abriu a boca para concordar, e as palavras “Por que não?” lhe escaparam dos lábios. Ela deu de ombros.
— Talvez devêssemos deixar algum dinheiro — sugeriu Nijel.
— Não olhem para mim — alarmou-se Creosoto.
— Ou escrever um bilhete e deixar debaixo das rédeas. Ou qualquer coisa assim. Vocês não acham?
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