É como o outro ditado que nunca conseguiram entender, que diz que não se cruza o mesmo rio duas vezes. Experiências com um mago de pernas compridas e um rio estreito revelaram que é possível cruzar o mesmo rio 30, 35 vezes por minuto.
Os magos não gostam muito de filosofia. No que lhes diz respeito, é possível aplaudir com uma única mão, mas o som sai pela metade.
Neste caso em particular, porém, Rincewind não podia voltar para casa porque ela não estava mais lá. Havia uma cidade cortada pelo Rio Ankh, mas o mago jamais havia deitado olhos nela. Era branca, limpa e não cheirava a latrina cheia de arenques mortos.
Em estado de choque, ele pousou no que outrora fora a Praça das Luas Partidas. Havia chafarizes. É claro que, antes, também havia chafarizes, mas eles apenas gotejavam, e a água parecia sopa rala. O chão, agora, era composto de lajes leitosas, com partículas brilhantes. E, embora o sol estivesse no horizonte como uma metade de laranja, quase não havia ninguém ali. Em geral, Ankh estava sempre abarrotada, e a cor do céu era mero detalhe de fundo.
Longas espirais de fumaça desprendiam-se da coroa fumegante, acima da Universidade. Era o único movimento no local, além dos chafarizes.
Rincewind sempre sentira orgulho do fato de estar só, no meio da cidade apinhada, mas era muito pior se sentir só quando se estava de fato sozinho.
Enrolou o tapete, botou-o no ombro e avançou, por entre ruas assombradas, em direção à Universidade.
O portão estava aberto, ao sabor do vento. Grande parte do prédio parecia arruinada por disparos perdidos e ricochetes. A torre da fonticeria, alta demais para ser de verdade, parecia ilesa. Não era o caso da antiga Torre de Arte. Metade da magia destinada à torre vizinha parecia ter repercutido nela. Pedaços haviam derretido.
Algumas partes fulguravam, outras tinham se cristalizado. Outras pareciam ter se torcido para além das três dimensões normais. Fazia a gente sentir pena das pedras por sofrerem aquele tipo de tratamento. Na verdade, havia acontecido quase tudo com a torre, menos o colapso propriamente dito. Ela estava tão devastada que parecia que até a gravidade tinha desistido dela.
Rincewind suspirou e contornou a base da torre, em direção à biblioteca.
Em direção ao lugar onde, um dia, havia sido a biblioteca.
Lá estava o arco do vão da porta, e a maior parte das paredes ainda se encontrava de pé, mas o teto havia caído e tudo estava preto de fuligem.
Rincewind limitou-se a olhar durante algum tempo.
Largou o tapete e correu, tropeçando no entulho que quase bloqueava a entrada. O chão de pedras ainda estava quente. Aqui e ali, restos de alguma estante ardiam em chamas.
Rincewind corria para a frente e para trás, por entre os montes reluzentes, subindo desesperadamente neles, jogando longe móveis carbonizados, livrando-se dos pedaços de teto caído com força menos que sobre-humana.
Parou uma ou duas vezes para recuperar o fôlego, mas logo mergulhava novamente nos escombros, cortando as mãos em cacos de vidro da cúpula do telhado. Ele parecia soluçar.
Por fim, os dedos ávidos tocaram uma coisa quente e macia.
O mago jogou para o lado uma viga queimada do telhado, avançou aos trancos por uma porção de azulejos partidos e olhou para baixo.
Naquele local, meio esmagado pela viga e queimado pelo fogo, havia um grande cacho de bananas maduras.
Com muito cuidado, pegou uma das frutas, sentou-se e olhou-a durante um bom tempo. Então, comeu-a.
— Não deveríamos tê-lo deixado ir assim — disse Conina.
— Como poderíamos impedir, ó formosa águia dos olhos de corça?
— Ele pode fazer uma besteira!
— Isso é bem provável — ironizou Creosoto.
— Enquanto a gente mostra que é inteligente e fica aqui nessa praia quente sem nada para comer nem beber. É isso?
— Você poderia me contar uma história — sugeriu Creosoto, tremendo ligeiramente.
— Cale a boca.
O xerinfe correu a língua pelos lábios.
— Imagino que uma piadinha rápida esteja fora de questão? — insistiu.
Conina suspirou.
— A vida é mais do que narrativa, sabia?
— Desculpe. Perdi o controle.
Agora, com o sol alto, a praia de conchas esmigalhadas reluzia como uma salina. O mar não tinha melhor aspecto à luz do dia. Movia-se feito óleo.
Para ambos os lados, a praia estendia-se em longas curvas planas, sem apresentar nada, além de uns poucos tufos de grama seca que viviam da umidade vaporizada. Não havia nem sinal de sombra.
— Estamos numa praia — observou Conina. — E, na minha opinião, isso significa que, mais cedo ou mais tarde, vamos dar num rio. Tudo que temos de fazer é seguir em uma direção.
— Por outro lado, adorável neve das encostas do Monte Eritor, não sabemos qual.
Nijel suspirou e enfiou a mão na bolsa.
— Hã — disse. — Desculpe. Será que isso aqui não pode ajudar? Eu roubei. Sinto muito.
Ele estendeu a lâmpada que estava no depósito de tesouros.
— E mágica, não é? — perguntou, cheio de esperanças. — Já ouvi falar. Não vale a pena tentar?
Creosoto sacudiu a cabeça.
— Mas você disse que o seu avô a usou para fazer fortuna! — protestou Conina.
— Uma lâmpada — advertiu o xerinfe. — Usou uma lâmpada. Não esta. A lâmpada verdadeira era um objeto velho, amassado. Um dia, surgiu um vendedor ambulante malvado, oferecendo lâmpadas novas em troca de velhas, e minha bisavó trocou-a por esta aí. A família guardou-a no cofre como uma espécie de recordação dela. Uma mulher terrivelmente burra. É claro que não funciona. — Já tentou?
— Não, mas o sujeito não teria se desfeito dela se funcionasse.
— Esfregue — pediu Conina. — Mal não pode fazer.
— Eu não esfregaria — avisou Creosoto.
Nijel suspendeu a lâmpada com cuidado. A peça tinha uma aparência estranhamente lisa, como se alguém houvesse se disposto a criar uma lâmpada que agisse depressa.
Ele esfregou-a.
O resultado não foi nada espetacular. Houve um clique fraco e um sopro de fumaça perto dos pés de Nijel. Depois, apareceu uma linha na praia, a alguns metros da fumaça. Ela se estendeu rapidamente para delinear um quadrado na areia, que sumiu.
Um vulto surgiu do chão, deteve-se e resmungou.
Trazia um turbante, um bronzeado aristocrático, um pequeno medalhão de ouro, short brilhoso e modernos sapatos de corrida com biqueira recurva.
Disse:
— Quero esclarecer algumas coisas. Onde estou?
Conina foi a primeira a se recuperar.
— Numa praia — respondeu.
— Tudo bem — disse o gênio. — O que estou perguntando é em que lâmpada, em que mundo.
— Você não sabe?
O gênio tirou a lâmpada das mãos de Nijel.
— Ah, esse negócio velho — disse. — Só divido as despesas. E tenho direito a duas semanas em agosto, mas é claro que nem sempre dá para escapar.
— São muitas lâmpadas? — perguntou Nijel.
— Estou meio sobrecarregado — confirmou o gênio. — Aliás, ando pensando em variar um pouco com anéis. Anel é o boom do momento. Desculpe, pessoal, o que posso fazer por vocês?
A última frase foi pronunciada com aquela voz especial que usamos para parodiar a nós mesmos, na vã esperança de que nos faça parecer menos idiotas.
— A gente… — começou Conina.
— Eu quero uma bebida — interrompeu Creosoto. — E você tem de dizer que meu desejo é uma ordem.
— Ah, ninguém mais diz isso — contestou o gênio, e fez surgir um copo.
Em seguida, dirigiu a Creosoto um sorriso fulgurante que durou uma pequena porcentagem de segundo.
— Queremos que você nos leve a Ankh-Morpork — afirmou Conina.
O gênio pareceu confuso. Ele fez surgir um livro grosso [19] Era jeidimito, auxílio inestimável para todos aqueles cujo ofício envolvia o arcano e o hermético. Continha uma lista de tudo que não existia e não era importante em nenhum aspecto. Algumas páginas só podiam ser lidas depois da meia-noite ou sob iluminação estranha e improvável. Havia a descrição de constelações subterrâneas e vinhos até então não fermentados. Para o ocultista verdadeiramente moderno, que podia bancar a versão com capa de pele de aranha, havia até um suplemento mostrando o metrô de Londres com as três estações que nunca se ousa mostrar nos mapas públicos.
, e consultou-o.
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