Fazia calor dentro da torre. Não existiam pavimentos internos, apenas uma série de corredores. Havia muitos magos, e a área central era uma coluna de luz octarina que estalava alto à medida que eles jogavam poder ali dentro. Na base, estava Abrim, com as pedras octarinas do chapéu reluzindo tanto que mais pareciam buracos abertos para um universo diferente.
O vizir mantinha as mãos estendidas, os dedos abertos, os olhos fechados e a boca numa linha fina de concentração, equilibrando todas as forças. Em geral, os magos controlavam o poder apenas até onde ia sua capacidade física, mas Abrim estava aprendendo rapidamente.
Bastava fazer de si mesmo o vértice da ampulheta, o suporte da balança, o rolo em volta da lingüiça.
Fazer certo, e ser o poder…
Já foi mencionado que os pés dele estavam vários centímetros acima do chão? Os pés dele estavam vários centímetros acima do chão.
Abrim vinha reunindo energia para um feitiço que subiria ao céu e envolveria a torre de Ankh com milhares de demônios quando escutou uma batida vigorosa na porta.
Existe um mantra que sempre é dito nessas ocasiões. Não interessa se a porta é a aba de uma barraca, o pedaço de couro de uma tenda açoitada pelo vento, três centímetros de madeira dura, com excelentes pregos de ferro, ou um retângulo de papelão, com folha de mogno e uma pequena luminária feita de pedaços horrorosos de vidro colorido, além de uma campainha que toca até vinte melodias famosas que nenhum amante de música gostaria de ouvir, mesmo depois de cinco anos de privação auditiva.
Um mago virou-se para outro e perguntou:
— Quem será, a essa hora?
Houve mais uma série de batidas na madeira.
— Não pode haver ninguém vivo lá fora — falou o outro mago, e falou em pânico, porque, se eliminássemos a possibilidade de ser alguém vivo, isso sempre nos deixava a suspeita de que talvez fosse alguém morto.
Desta vez, as batidas estremeceram as dobradiças.
É melhor um de nós ir até lá — propôs o primeiro mago.
— Hã… Ah. Certo.
Ele atravessou, sem muita pressa, o corredor arqueado.
— Só vou ver quem é — disse.
— Excelente.
O vulto hesitante que se dirigia a porta era estranho. Mantos comuns não eram proteção suficiente no campo energizado da torre. Por isso, sobre o brocado e o veludo, o mago usava um macacão grosso e acolchoado, forrado com aparas de sorva e bordado com desenhos cabalísticos. Ele havia prendido uma viseira de vidro fume ao chapéu pontudo, e as luvas enormes sugeriam que era goleiro numa partida de críquete jogada em velocidade supersônica. As vibrações e os raios actínicos do grande trabalho realizado no salão produziam sombras escabrosas ao redor, à medida que ele virava os ferrolhos.
Abaixou a viseira e abriu uma fresta na porta. — Não queremos nenhum… — começou ele, e deveria ter escolhido melhor as palavras, porque foram suas últimas.
Passou-se algum tempo até que o colega notasse a demora de sua ausência e atravessasse o corredor, atrás dele. A porta estava aberta, e o inferno taumatúrgico do mundo exterior rugia contra a teia de feitiços que o reprimia. Na verdade, a porta não estava totalmente aberta. Ele puxou a madeira para ver por que, e soltou um gemido.
Ouviu um barulho a suas costas. Deu meia-volta. — Que… — começou ele. Que é uma sílaba bem fraca para se terminar a vida.
Sobrevoando o Mar Círculo, Rincewind sentia-se ridículo.
Mais cedo ou mais tarde, isso acontece com todo mundo.
No bar, por exemplo, alguém nos empurra, e então nos viramos rapidamente e dirigimos algumas injúrias para — aos poucos nos damos conta — a fivela do cinto de um homem que, mais do que nascido, parece ter sido talhado.
Ou um carro minúsculo corta o nosso, e aceleramos para mostrar o punho ao motorista que, e isso fica evidente à medida que ele se levanta, provavelmente estava sentado no banco traseiro.
Ou, então, lideramos os colegas rebeldes até a cabine do capitão e batemos na porta. Ele mete para fora a cabeça enorme, com uma faca em cada mão, e dizemos: “Vamos assumir o comando do navio, seu bosta, e os rapazes estão comigo!”. Ele pergunta: “Que rapazes?”. De repente, sentimos um grande vazio atrás de nós, e dizemos “Hum…”
Em outras palavras, é a famosa sensação de calor experimentada por qualquer pessoa que já tenha deixado as ondas da raiva levá-la à praia da desforra, metendo-se, na linguagem poética do dia-a-dia, numa grande enrascada.
Rincewind ainda estava irritado, humilhado e tudo o mais, mas essas emoções haviam cedido um pouco, e parte de sua personalidade normal retornara. Não ficou nada satisfeita de se ver sobre alguns fios de lã azul e dourada, acima das ondas fosforescentes.
Ele estava a caminho de Ankh-Morpork. Tentou lembrar por quê.
Obviamente, era onde tudo havia começado. Talvez fosse a presença da Universidade, que era tão carregada de magia, que parecia uma bala de canhão sobre a delicada realidade do universo. Ankh era onde tudo começava e terminava.
Também era sua casa, por pior que fosse, e clamava por ele.
Já foi mencionado que Rincewind parecia ter roedores em sua árvore genealógica e, em momentos de estresse, sentia uma vontade terrível de correr para a toca.
Ele deixou o tapete deslizar ao sabor das correntes de ar, enquanto a alvorada — que, segundo Creosoto, provavelmente teria dedos cor-de-rosa — criava um círculo de fogo ao redor do Disco. Ela lançava vagarosos raios de luz sobre um mundo ligeiramente diferente.
Rincewind piscou. Era uma luz esquisita. Não. Agora, que parava para pensar, não era esquisita, mas exquisita, palavra que encerra muito mais esquisitice. Era como olhar o mundo através de uma neblina de calor, mas uma neblina que tinha vida própria. Ela vibrava e se alongava, e sugeria que não se tratava de mera ilusão de ótica, mas que a própria realidade vinha se distendendo, como uma bola de gás tentando conter gás demais.
A oscilação era maior na direção de Ankh-Morpork, onde raios e chafarizes de ar contorcido indicavam que a luta não havia abrandado. Uma coluna semelhante erguia-se sobre Al Khali. Rincewind se deu conta de que não era a única.
Aquilo não era uma torre sobre Quirm, onde o Mar Círculo desembocava no grande Oceano Periférico? E havia outras.
Tudo ia de mal a pior. A magia dos magos se dissolvia. Adeus Universidade, níveis e ordens. No fundo do coração, todos os magos sabiam que o número natural da magia dos magos era 1. As torres se multiplicariam e brigariam até sobrar apenas uma delas. Daí os magos lutariam até que restasse somente um.
A essa altura, ele certamente lutaria consigo mesmo.
Toda a estrutura que funcionava como estabilizadora da magia estava ruindo. Rincewind sentia-se péssimo. Nunca havia sido bom em mágica, mas a questão não era essa. Ele conhecia o seu lugar. Era no fundo, lá embaixo, mas pelo menos tinha o seu lugar. Podia erguer os olhos e ver toda a delicada máquina funcionar, suavemente absorvendo a magia natural gerada pela rotação do Disco.
Tudo que ele tinha não era nada, mas era alguma coisa. Agora, lhe tiravam aquilo.
Rincewind voltou o tapete para o brilho distante de Ankh-Morpork, que não passava de um pontinho cintilante à luz da manhã, e uma parte de sua mente, que não vinha fazendo nada, perguntou-se por que estaria tão claro. Também parecia haver lua cheia, e até Rincewind, cujo conhecimento de ciências naturais era bastante vago, estava certo de que houvera lua cheia poucos dias antes.
Bem, não importa. Chega! Ele não tentaria entender mais nada. Apenas voltaria para casa.
Só que mago nunca volta para casa.
Esse é um dos antigos ditados que mago algum jamais conseguiu entender. Eles não podiam ter esposas, mas podiam ter pais, e muitos voltavam para a cidade natal na noite de Reveillon dos Porcos, ou na Quinta-Feira Tamanca, para cantar um pouco e ver todos os valentões da infância tratando de evitá-los na rua.
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