— Deslizando pelo ar?…
— Talvez sim, talvez não. Quando chegaram ao meu mundo nós já sabíamos como nos locomover no ar. Mas nos ensinaram como voar de um mundo para outro. Nós ainda não tínhamos máquinas capazes disso.
Asra estava intrigado pela introdução do narrador na narrativa. Eu estava febril pelo efeito das drogas e não sabia mais como continuar a história.
— Continue — dizia ele, tentando dar sentido às coisas que ouvia. — Que faziam eles além de andar no ar?
— Ah, o mesmo que o povo daqui faz. Só que eles estão sempre em kemmer. — Ele deu um sorriso zombeteiro. Não há nenhuma possibilidade de despistamento nesta vida e meu apelido entre os prisioneiros e guardas era infalivelmente o mesmo: pervertido. Mas onde não há desejo nem desonra, ninguém, mesmo sendo anômalo, é isolado. E creio que Asra não fazia nenhuma conexão desta noção comigo e minhas peculiaridades. Ele as encarava, meramente, como uma variação do velho tema, e assim repetiu:
— Em kemmer, todo o tempo… É então um lugar de prazer? Ou um lugar de punição?
— Não sei, Asra. O que é este mundo aqui?
— Nem um nem outro, meu jovem. Isto aqui é o mundo como ele é, apenas. Você nasce nele e… as coisas são como são…
— Não nasci nele. Eu vim para ele. Eu o escolhi.
O silêncio e a penumbra nos rodeavam. Fora, distante, no campo, além da prisão, havia apenas um remoto sussurro de som, uma serra rangendo, nada mais.
— Ah, bem… sendo assim… — murmurou e logo suspirou, esfregando as pernas doloridas, com um fraco gemido, de que ele mesmo nem se apercebeu.
— Nenhum de nós escolhe… — disse afinal.
Duas noites depois entrou em coma e logo morreu. Nunca cheguei a saber por que crime, falta ou irregularidade ele fora levado para as fazendas voluntárias. Sabia apenas que lá estava há menos de um ano.
No dia seguinte ao de sua morte, eles me mandaram buscar de novo para outro exame; desta vez tiveram que me carregar e não consigo me lembrar de mais nada depois.
XIV
A tenebrosa fuga
(do diário de Estraven)
Quando Obsle e Yegey se ausentaram da cidade e o vigia da casa de Slose impediu minha entrada, senti que estava no momento de voltar-me para os meus inimigos, pois nada mais podia obter dos amigos. Fui ao Comissário Shusgis e preparei-lhe uma chantagem. Como não tinha dinheiro suficiente para comprá-lo, pus em jogo minha reputação. Entre os pérfidos, o nome de traidor encabeça a lista. Contei-lhe que estava em Orgoreyn como agente da facção dos nobres de Karhide, que estava planejando o assassinato de Tibe, e que ele tinha sido escolhido como meu contato com o Sarf; se ele se recusasse a me dar a informação de que necessitava, eu passaria outra informação aos meus amigos em Erhenrang, isto é, a de que ele era um agente duplo, servindo à facção do Mercado Livre. Isto, naturalmente, seria encaminhado de volta a Mishnory e ao Sarf. E o pobre desgraçado caiu na história. Contou-me logo o que eu desejava saber e chegou a perguntar se eu aprovava. Eu não corria perigo imediato por parte de meus amigos Obsle, Yegey e os outros. Eles tinham comprado sua segurança sacrificando o Enviado, e confiavam em mim para não causar embaraço tanto a eles quanto a mim próprio.
Até eu procurar Shusgis, ninguém, exceto Gaum, tinha me considerado importante, mas agora eles estariam firmes no meu encalço. Tenho que liquidar logo meus assuntos e desaparecer.
Não tendo jeito de entrar em contato com o pessoal de Karhide, pois as cartas seriam lidas e as transmissões de rádio e telefonemas interceptados, dirigi-me então pela primeira vez à embaixada real.
Sardon rem ir Chenewich, que eu conhecera bem na corte, estava fazendo parte do pessoal de lá. Concordou imediatamente em enviar uma mensagem a Argaven, notificando o que acontecera ao Enviado e onde ele se encontrava prisioneiro. Podia confiar em Chenewich, que era inteligente e honesto, e em que esta mensagem não seria interceptada, apesar de não poder prever absolutamente o que faria Argaven, de que forma agiria ao saber destas notícias.
Eu desejava que Argaven estivesse a par da informação no caso de a nave espacial ter que baixar, subitamente, ao solo; até aquele momento eu tivera esperanças de que ele tivesse se comunicado com ela antes de o Sarf o haver detido.
Eu também estava em perigo, e se tivesse sido visto entrando na embaixada, o perigo seria maior e imediato.
Saí direto de seus portões para o cais das caravanas, no lado sul, e antes do meio-dia, odstreth susmy, deixei Mishnory, do mesmo modo por que nela penetrara: como carregador de caminhão. Tinha em meu poder os meus antigos vistos de entrada, agora um pouco alterados para o novo tipo de trabalho. A falsificação de papéis é arriscada em Orgoreyn, onde eles são inspecionados cinqüenta vezes diariamente, mas não é raro as pessoas tentarem correr esse risco, e meus antigos camaradas da ilha do Peixe me haviam ensinado alguns truques sobre o assunto. Usar um nome falso me humilha, mas só isto poderia me salvar ou possibilitar a minha travessia do país até o litoral do mar Ocidental. Meus pensamentos estavam aí, no ocidente, enquanto a caravana atravessava a ponte de Kunderer e saía de Mishnory. O outono caminhava para o inverno agora, e eu teria que chegar ao meu lugar de destino antes que as estradas se fechassem ao tráfego pesado e enquanto eu pudesse ter alguma possibilidade de ação. Eu já vira uma fazenda ou campo voluntário em Komsvashom, quando estivera na administração de Sinoth, e já conversara com ex-convictos dessas fazendas. O que vira e ouvira voltava, agora, intensamente à minha memória. O Enviado, tão vulnerável ao frio, usando casaco mesmo à temperatura de trinta graus negativos, não sobreviveria ao inverno em Pulefen. Este pensamento me fazia andar mais depressa, mas a caravana ia em ritmo lento, serpenteando e parando de cidade em cidade, ora para o norte ora para o sul, carregando e descarregando. Isto me tomou quase um mês até chegar a Ethwen, no estuário do rio Esagel. Lá tive sorte.
Conversando com os homens na Hospedaria dos Viajantes, ouvi falar de um comércio de peles, em atividade na parte alta do rio, e de como os caçadores de pele licenciados subiam e desciam o rio em trenós ou barcos de neve, através da floresta de Tarrenpeth quase até os gelos árticos. Sobre suas conversas de armadilhas de caça, arquitetei um plano.
Há pesthry de pele branca na Terra de Kerm, assim como nos platôs gelados de Gobrin; elas gostam dos lugares bafejados pelos ventos das geleiras. Eu as caçara, quando jovem, nas florestas de thore em Kerm; por que não ir caçá-las agora nas florestas de thore em Pulefen?
No oeste distante e ao norte de Orgoreyn, nas grandes extensões selváticas das terras de Sembensyen, os homens se locomovem, para lá e para cá, à vontade, pois não há bastante inspetores para vigiar-lhes os passos. Algo da antiga liberdade sobrevive aí, durante a Nova Era. Ethwen é um porto acinzentado, construído sobre as rochas pardas da baía de Esagel; um vento chuvoso cheirando a maresia sopra nas ruas e o povo é constituído de marujos taciturnos, de fala curta e seca. Volto meus olhos para Ethwen com gratidão, pois ali a sorte me favoreceu.
Comprei esquis, raquetas de neve, armadilhas, provisões; adquiri minha licença de caça e autorização e identificação do escritório comensal e parti a pé, subindo o Esagel, com um grupo de caçadores conduzidos por um velho chamado Mavriva. O rio ainda não estava gelado e os carros podiam usar a estrada — pois chovia mais do que nevava nesta vertente costeira, mesmo agora, no último mês do ano.
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