“Se toda a comensalidade estivesse de olho no Enviado, o Sarf não ousaria tocar nele, ou em você.”
Obsle suspira:
“Sim, eu sei, mas não podemos fazê-lo, Estraven. O rádio, boletins impressos, periódicos científicos, tudo está nas mãos do Sarf. Que é que posso fazer? Discursos nas esquinas como algum pregador fanático?”
“Bem”, respondo-lhe, “pode-se fazer algo como falar ao povo, pôr em marcha uma onda de rumores; eu tive que fazer uma coisa assim, ano passado, em Erhenrang. Fazer com que o povo faça perguntas para as quais você tem resposta, isto é, o Enviado as tem.”
“Se ao menos ele trouxesse aquela danada da nave para cá, para que tivéssemos algo para mostrar ao povo… Mas como está…”
“Ele não trará a nave aqui a não ser que ele saiba que vocês estão agindo de boa fé.”
“E não estou?!”, exclama Obsle inchando como um sapo. “Não gastei todo o meu tempo o mês passado neste assunto? Boa fé! Ele espera que acreditemos no que diz e, em troca, não confia em nós?”
“Ele deveria?”
Obsle bufa, mas não replica. Ele é o mais honesto dos membros do governo orgota que conheço.
Odgetheny susmy (14.° dia do mês do outono). Para ser uma alta patente no Sarf tem-se que possuir, assim me parece, uma certa forma complexa de estupidez. Gaum é um bom exemplo. Ele me encara como um agente de Karhide tentando conduzir Orgoreyn a uma tremenda perda de prestígio, persuadindo seu governo a acreditar na farsa de um enviado do Conselho Ecumênico; ele pensa que passei meu tempo como primeiro-ministro na preparação de tal plano. Por Deus! Tenho coisa melhor a fazer do que gastar meu prestígio com a ralé. Mas isto é uma coisa elementar que ele não está capacitado para ver. Agora que Yegey, aparentemente, se libertou de mim, Gaum pensa que eu posso ser comprado e assim se preparou para fazê-lo à sua própria maneira. Ele tem me observado ou mandou me espionar, de modo que ficou sabendo que eu deveria entrar em kemmer no dia 12 ou 13; assim, a noite passada, ele me apareceu em pleno kemmer, induzido por hormônios, evidentemente, pronto para me seduzir. Encontramo-nos, por acaso, na Rua Pyenfen.
“Harth! Não o tenho visto há muito tempo; por onde tem se escondido ultimamente? Então, vamos tomar uma cerveja juntos?”
Escolheu uma cervejaria próxima de uma casa pública de kemmer. Pediu aqua-vita e não cerveja. Ele não queria perder tempo. Após o primeiro copo, colocou sua mão na minha e aproximando seu rosto do meu, murmurou:
“Não nos encontramos por acaso, estava à sua espera. Eu o desejo como meu parceiro esta noite.” E me chamava pelo primeiro nome.
Eu só não cortei sua língua porque desde que saí de minha terra não carrego punhal comigo. Disse-lhe que tinha intenção de abster-me de kemmer enquanto estivesse no exílio. Mas ele falava amorosamente, segurando minhas mãos e se transformando em fêmea a olhos vistos.
Gaum é belíssimo em kemmer e ele contava com essa beleza e com sua força sexual, sabendo, suponho, que sendo handdarata eu não usaria drogas antiafrodisíacas e tentaria a abstinência, com muitos aspectos em desvantagem. Ele se esqueceu, porém, que a aversão é tão forte quanto qualquer droga.
Libertei-me das suas garras, pois, naturalmente, já estava me excitando, e abandonei-o, com a sugestão de que deveria procurar a casa de kemmer ali ao lado. Olhou-me com ódio, mas era de dar pena. Ele estava realmente em kemmer e seu desejo era intenso, embora falso na sua finalidade. Pensou, realmente, que eu iria vender-me tão barato? Deve pensar que sou muito instável, o que me torna, realmente, inquieto. Danem-se esses sujeitos sujos! Não há sequer uma alma limpa entre eles!
Odsordny susmy (15.° dia de outono). Esta tarde, Genly Ai falou na reunião dos Trinta e Três. Não permitiram entrada ao público, nem emissão pelo rádio, mas Obsle gravou a sessão e depois pude ouvir a fita.
O Enviado falou bem, com uma candura e insistência comoventes. Há nele uma inocência que eu achava estranha e infantil; mas, em outras ocasiões, essa aparente candura revela uma disciplina de conhecimento e uma grandeza de finalidades que me impressionam. Através dele sinto que fala um povo perspicaz e magnânimo, uma raça que juntou numa única sabedoria todas as velhas, terríveis e profundas experiências de vida. Mas ele é jovem, e, assim sendo, impaciente e sem vivência. Ele está em nível mais alto que nós, e tem uma visão ampla, maior que a nossa, mas ele próprio, como pessoa humana, tem somente a dimensão de um homem. Expressa-se, agora, melhor que em Erhenrang, de maneira mais simples e mais sutil; aprendeu seu ofício trabalhando nele, como todos nós o fazemos.
Seu discurso era freqüentemente interrompido pelos membros da facção dominante, que pediam ao presidente para fazer calar aquele lunático, expulsá-lo e dar andamento aos outros assuntos. O Comensal Yemenbey era o mais desordeiro e provavelmente o mais espontâneo. E vociferava para Obsle: “Você não está engolindo todo esse blá-blá-blá?!” Havia interrupções metodicamente feitas por Kaharosile, mas era difícil segui-las na gravação. De memória:
Alshel, presidindo: — Sr. Enviado, achamos que as informações e propostas feitas pelos senhores Obsle, Slose, Ithepen, Yegey e outros são extremamente interessantes e estimulantes. Entretanto, precisamos de um pouco mais de material para levar isto avante. (Risadas.) Desde que o soberano de Karhide tem em seu poder o seu veículo, trancado de modo que não podemos vê-lo, seria possível, como foi sugerido, o senhor fazer descer a… nave estelar? Como a chama mesmo?…
Genly Ai: — Nave estelar é um bom nome, Sr. Alshel.
Alshel: — Sim? Mas como vocês a chamam?
Genly Ai: — Bem, em termos técnicos é uma Nafal 20, de vôo interestelar, sob controle manual e de concepção dos celtianos.
Alshel: — Por favor… Bem, se pudesse ter essa nave aqui embaixo, no solo que pisamos, como diria, para que tivéssemos alguma prova substancial…
Voz: — Vísceras de peixes é que são substanciais!
Genly Ai: — Gostaria muito de trazer à terra essa nave, Sr. Alshel, como prova e testemunho de nossa boa fé recíproca. Aguardo apenas seu pronunciamento público deste acontecimento.
Kaharosile: — Comensais, vocês não estão vendo do que se trata? Não é uma piada estúpida. Tem a intenção de ser uma caçoada pública de nossa credulidade, nossa estupidez, maquinada com uma audácia incrível por esta pessoa que está em frente a nós. Vocês sabem que ele vem de Karhide, sabem que é um agente karhideano. Podem ver que ele é um deformado sexual e que devido à influência do culto das trevas é deixado em Karhide sem cura, e às vezes é até criado artificialmente para as orgias sexuais dos áugures. E no entanto, quando ele diz “eu sou dos espaços siderais”, alguns dos senhores fecham os olhos, curvam a cabeça e realmente acreditam! Nunca pensei que isto fosse possível… etc., etc.
A julgar pela gravação, Ai suportou insultos e agressões com paciência. Obsle disse que ele se saiu bem. Eu ficara vagando fora do salão, para vê-lo à saída da sessão. Ai tinha um ar severo e meditativo. E com razão. Minha inutilidade é insuportável. Fui eu quem pôs esse mecanismo a funcionar e agora não posso controlar sua evolução. Perambulo pelas ruas com o capuz abaixado para ver, de relance, o Enviado. Para essa vida cheia de subterfúgios e inútil, atirei fora meu poder, meu dinheiro e meus amigos. Que tolo você é, Therem! Por que nunca posso colocar meu coração numa causa plausível?
Odeps susmy. O audisível que Genly Ai colocou, agora, nas mãos dos Trinta e Três, aos cuidados de Obsle, não vai mudar nada na mente deles. Se os matemáticos reais não compreenderam seu princípio, então os engenheiros e matemáticos orgotas compreenderão ainda menos, e nada será confirmado. Uma lógica admirável se fosse um mundo de áugures e de handdara, mas infelizmente temos de tocar para a frente, provando e desprovando, perguntando e respondendo.
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