Para além do console e seus esquisitos painéis de instrumentos, as amplas janelas olhavam para a noite estrelada, através de um vale dormindo sob uma lua pálida, e para a longínqua cadeia de montanhas. Um rio serpenteava pelo vale, brilhando aqui e ali, quando o luar incidia sobre algum trecho de água. Tudo tão pacífico! Devia ter sido assim quando o homem nascera, igual a seu fim.
Lá longe, quem poderia dizer a quantos milhões de quilômetros de espaço, Karellen estaria esperando. Era estranho pensar que a nave dos Senhores Supremos estava, naquele mesmo momento, se afastando da Terra a uma velocidade quase igual àquela em que seu recado viajaria. Quase igual, mas não igual. Seria uma maratona, mas suas palavras alcançariam o supervisor e Jan teria pago a dívida.
Até que ponto, pensou ele, Karellen planejara aquilo, e até onde teria sido uma improvisação magistral? Teria o supervisor deliberadamente permitido que ele penetrasse no espaço, havia quase um século, de modo a poder voltar e desempenhar o papel de que agora fora encarregado? Não, isso lhe parecia demasiado fantástico. Mas Jan tinha certeza de que Karellen estava envolvido num vasto e complicado complô. Mesmo executando ordens, estudava a Mente Suprema com todos os instrumentos de que dispunha. Jan suspeitava que não fosse apenas curiosidade científica o que inspirava o supervisor; talvez os Senhores Supremos sonhassem algum dia libertar-se daquela forma peculiar de escravidão, quando tivessem aprendido o suficiente a respeito dos poderes aos quais serviam, f
Que Jan pudesse contribuir para aumentar esses conhecimentos com o que estava fazendo parecia-lhe difícil de acreditar. — Diga-nos tudo o que vir — pedira-lhe Rasha-verak. — A imagem que seus olhos virem será duplicada pelas nossas câmaras. Mas a mensagem que lhe penetrar a mente pode ser muito diferente e nos dizer muito. — Bem, ele procuraria fazer o máximo.
— Nada a relatar ainda — começou por dizer. — Há alguns minutos, vi o rastro de sua nave desaparecer no céu. A lua cheia acaba de passar e quase a metade de sua face familiar está agora afastada da Terra, mas acho que vocês já sabem disso.
Jan fez uma pausa, sentindo-se ligeiramente idiota. Havia algo de incongruente, até mesmo de absurdo, em tudo o que estava fazendo. A história chegara ao clímax, mas ele podia ser um comentador de rádio, descrevendo uma corrida de cavalos ou uma luta de boxe. Deu de ombros e afastou esse pensamento. Suspeitava que, em todos os momentos importantes, sempre houvesse um anticlímax — e não havia dúvida de que só ele podia sentir sua presença ali.
— Houve três pequenos tremores de terra nos últimos sessenta minutos — prosseguiu. — Eles devem ter um controle espantoso da rotação da Terra, mas ainda não é perfeito… Sabe, Karellen, vai ser muito difícil dizer-lhe algo que seus instrumentos já não lhe tenham dito. Teria sido útil me haverem dado alguma idéia do que esperar e por quanto tempo. Se nada acontecer, voltarei a falar daqui a seis horas, conforme combinado…
«Alô! Acho que eles estavam esperando que vocês se fossem. Está começando a acontecer algo. As estrelas estão ficando menos brilhantes. É como se uma grande nuvem estivesse subindo, a grande velocidade, e cobrindo todo o céu. Mas não se trata realmente de uma nuvem. Parece ter como que uma estrutura, posso ver uma nebulosa rede de linhas e faixas que não param de mudar de posição. É como se as estrelas estivessem emaranhadas numa gigantesca teia de aranha.
«A rede está começando a brilhar, a pulsar com a luz, exatamente como se estivesse viva. E suponho que esteja mesmo; ou será algo tão acima da vida quanto isso está acima do mundo inorgânico?
«O clarão parece estar passando para outro lado do céu, esperem um pouco, enquanto eu vou para a outra janela.
«Sim, eu já devia ter desconfiado. Há uma grande coluna de fogo como se fosse uma árvore incendiada, sobre o horizonte ocidental. Está a uma grande distância, ao redor do mundo. Sei de onde ela vem: eles estão finalmente a caminho, para se tornarem parte da Mente Suprema. Sua provação terminou. Estão deixando os últimos restos de matéria para trás.
«À medida que esse fogo sobe da Terra, vejo que a rede se torna mais firme e menos nebulosa. Em alguns lugares, parece quase sólida, mas as estrelas continuam a brilhar debilmente através dela.
«Acabo de me lembrar. Não é exatamente o mesmo, mas a coisa que vi irrompendo sobre seu mundo, Karellen, era muito parecida com isso. Seria também parte da Mente Suprema? Acho que vocês me ocultaram a verdade para que eu não tivesse idéias preconcebidas, para que eu pudesse ser um observador imparcial. Gostaria de saber o que suas câmaras lhe estão mostrando agora, para comparar com o que minha mente imagina que estou vendo!
«É assim que ela fala com vocês, Karellen, através de cores e formas como estas? Lembrei-me das telas de controle em sua nave e dos desenhos que apareciam nelas, fa-lando-lhes numa espécie de linguagem visual que seus olhos podiam interpretar.
«Agora, a coisa se parece com as cortinas da aurora, dançando e tremeluzindo por entre as estrelas. Acho que é isso mesmo, uma grande tempestade aurorai. Toda a paisagem está iluminada; está mais claro do que se fosse dia — vermelhos, amarelos e verdes parecem perseguir-se através do céu, oh, não há palavras, não me parece justo que seja só eu a ver, nunca pensei que tais cores existissem…
«A tempestade está agora amainando, mas a grande teia de névoa contínua. Acho que a aurora foi apenas um subproduto das energias que estão sendo liberadas lá, na fronteira do espaço..
«Um minuto só, reparei em algo mais. Meu peso está diminuindo. Que quererá dizer isso? Deixei cair um lápis, e está caindo lentamente. Algo aconteceu com a gravidade, está vindo uma grande ventania, vejo as árvores agitando os galhos, lá embaixo, no vale.
«Naturalmente, a atmosfera está escapando. Paus e pedras estão se erguendo no céu, quase como se a própria Terra tentasse segui-los pelo espaço. Há uma grande nuvem de pó, levantada pelo vendaval. Está ficando difícil ver… talvez clareie daqui a pouco.
«É — já está melhor. Tudo o que é móvel foi arrancado, as nuvens de poeira desapareceram. Até quando este edifício resistirá? E está ficando cada vez mais difícil respirar, preciso procurar falar mais devagar.
«Posso ver de novo com nitidez. A grande coluna de fogo continua no mesmo lugar, mas está se estreitando, parece o funil de um furacão, prestes a dissolver-se nas nuvens. E, oh, é difícil descrever, mas agora mesmo senti uma grande onda de emoção percorrer-me. Não era alegria ou tris- teza, uma sensação de ter conseguido… Será que foi obra de minha imaginação? Ou terá vindo de fora? Não sei.
«E, agora — isto não pode ser fruto da imaginação — o mundo parece vazio. Completamente vazio. É como se estivesse escutando rádio e a transmissão subitamente parasse. E o céu está de novo limpo — a teia de neblina sumiu. Para que outro mundo ela irá a seguir, Karellen? E vocês continuarão a servi-la?
«Estranho: tudo a minha volta está inalterado. Não sei por quê, mas pensei que…»
Jan estacou. Ficou um momento procurando as palavras e depois fechou os olhos, num esforço para se controlar. Não havia mais lugar para medo ou pânico. Ele tinha um dever a cumprir — um dever para com os homens e um dever para com Karellen.
Lentamente, a princípio, como um homem que acordasse de um sonho, recomeçou a falar:
— Os prédios à minha volta, o chão, as montanhas, tudo parece de vidro, posso ver através de tudo. A Terra está se dissolvendo, já quase não tenho peso. Vocês tinham razão: eles acabaram de brincar com os seus joguetes.
Читать дальше