Havia ali tudo o de que ele necessitava para se manter pelo resto da vida, mas o que mais queria era um piano eletrônico e algumas transcrições de Bach. Nunca tivera tanto tempo para dedicar à música quanto desejaria, e agora procuraria compensar. Quando não estava tocando, ouvia tapes de sinfonias e concertos, de modo que a villa nunca estava silenciosa. A música tornara-se seu talismã contra a solidão que, um dia, acabaria por atacá-lo.
Às vezes, dava grandes passeios pelos morros, pensando em tudo o que acontecera durante os poucos meses em que estivera longe da Terra. Nunca poderia supor, ao dizer adeus a Sullivan, havia oitenta anos terrestres, que a última geração da humanidade já estava no útero.
Que jovem louco ele fora! Mas, no fundo, não lamentava o que fizera; se tivesse ficado na Terra, teria testemunhado aqueles derradeiros anos, sobre os quais o tempo correra um véu. Em vez disso, dera um salto para o futuro e ficara sabendo as respostas a perguntas que nenhum outro homem jamais saberia. Sua curiosidade estava quase satisfeita, mas às vezes ele se perguntava por que seria que os Senhores Supremos continuavam à espera e o que aconteceria quando sua paciência fosse, por fim, recompensada.
Na maioria das vezes, porém, com a resignação que normalmente os homens só têm ao fim de uma vida longa e atarefada, ele sentava-se ao piano e enchia o ar com seu amado Bach. Talvez estivesse se iludindo, talvez fosse algum truque misericordioso da mente, mas Jan achava, agora, que era aquilo que ele sempre desejara fazer. Sua ambição secreta ousara, por fim, emergir para a luz forte da consciência.
Jan sempre fora um bom pianista; agora era o maior pianista do mundo.
Foi Rashaverak quem trouxe a notícia a Jan, mas ele já a adivinhava. Nas primeiras horas da manhã, um pesadelo o despertara e não conseguira mais dormir. Não se lembrava do sonho, o que era muito estranho, pois achava que todos os sonhos podiam ser lembrados se a pessoa fizesse força para isso imediatamente após acordar. Tudo quanto podia lembrar era que, no sonho, tornara a ser garotinho e estava numa vasta planície vazia, ouvindo uma voz ribombante, que falava uma língua desconhecida.
O sonho preocupara-o. Ficara pensando se não seria o primeiro sintoma da solidão atacando-lhe a mente. Inquieto, saíra da villa para o gramado mal cuidado.
A lua cheia banhava tudo de um luar tão brilhante, que ele podia ver perfeitamente. O imenso e reluzente cilindro da nave de Karellen estava atrás dos edifícios da base dos Senhores Supremos, pairando acima deles e reduzindo-os a proporções humanas. Jan olhou para a nave, tentando recordar as emoções que ela outrora despertara nele. Houvera um tempo em que fora como uma meta inatingível, um símbolo de tudo o que ele jamais esperara, realmente, alcançar. Agora não significava nada.
Como tudo estava quieto e calado! Naturalmente, os Senhores Supremos estavam tão ativos como de costume, mas, no momento, não havia sinais deles. Jan poderia estar sozinho na Terra; como, na verdade, estava. Olhou para a Lua, procurando ver algo familiar em que seus pensamentos pudessem descansar.
Havia os velhos e bem-lembrados mares. Penetrara quarenta anos-luz no espaço, mas nunca andara por aquelas planícies poeirentas e silenciosas, a menos de dois segundos-luz de distância. Por um momento, divertiu-se, tentando localizar a cratera Tycho. Quando a descobriu, achou estranho ver que essa mancha reluzente estava mais afastada da linha central do disco do que pensara. E foi então que se apercebeu de que o ovalado escuro do Maré Crisium estava faltando.
A face que seu satélite ora apresentava à Terra não era a que olhara para seu mundo desde o início da vida. A Lua começara a girar sobre seu próprio eixo.
Aquilo só podia significar uma coisa: do outro lado da Terra, naquele lugar, que tão rapidamente haviam arrasado, eles estavam emergindo de seu longo transe. Assim como uma criança, ao despertar, pode esticar os braços para saudar o dia, assim estavam eles flectindo os músculos e brincando com seus recém-descobertos poderes…
— Sua dedução é correta — disse Rashaverak. — Já não é prudente ficar aqui. Pode ser que eles nos ignorem, mas não podemos correr esse risco. Partiremos tão logo nosso equipamento seja embarcado, dentro de umas duas ou três horas.
Olhou para o céu, como se temendo que algum novo milagre acontecesse. Mas tudo estava em paz; a Lua desaparecera e apenas algumas nuvens esvoaçavam, bem alto, tocadas pelo vento de oeste.
— Não tem grande importância se eles mexerem com a Lua — acrescentou Rashaverak —, mas imagine se eles começarem a interferir com o Sol! Vamos deixar aqui alguns instrumentos, para podermos saber o que está acontecendo.
— Eu vou ficar — disse Jan abruptamente. — Já vi o suficiente do universo. Agora, só estou curioso de uma coisa: o destino de meu planeta.
O chão tremeu suavemente sob seus pés.
— Eu estava esperando isso mesmo — continuou Jan. — Se eles alterarem a rotação da Lua, o impulso angular será desviado para outro lugar. Quer dizer que a Terra está andando mais devagar. Não sei o que mais me intriga: se o como eles fazem isso, se o porquê.
— Ainda estão brincando — disse Rashaverak. — Que lógica há nos atos de uma criança? E, sob muitos aspectos, a entidade em que sua raça se transformou é uma criança. Não está ainda pronta a se fundir com a Mente Suprema. Mas não tardará a estar, e então a Terra será de vocês. Não completou a frase e Jan terminou-a para ele.
— Se, claro, a Terra ainda existir.
— Mesmo prevendo esse perigo, você prefere ficar?
— Prefiro. Há cinco — ou seis? — anos que estou na Terra. Aconteça o que acontecer, não me queixarei.
— Estávamos mesmo esperando — disse Rashaverak, devagar — que você preferisse ficar. Há algo que você pode fazer para nós…
O clarão da Stardrive foi diminuindo até morrer, num ponto qualquer além da órbita de Marte. Só ele, pensou Jan, percorrera aquela trajetória, dentre os bilhões de seres humanos que tinham vivido e morrido na Terra. E ninguém voltaria a percorrê-la.
O mundo era dele. Tudo aquilo de que precisava — todos os bens materiais que alguém pudesse jamais desejar — eram dele. Mas Jan já não estava interessado nisso. Não temia nem a solidão do planeta deserto, nem a presença que ainda perdurava ali, naqueles derradeiros momentos, antes de partir em busca de sua herança desconhecida. Na inconcebível esteira dessa partida, Jan não esperava que ele e seus problemas sobrevivessem por muito tempo.
Estava tudo bem. Fizera tudo o que desejava fazer, e arrastar uma vida sem objetivos, naquele mundo vazio, teria sido um anticlímax insuportável. Poderia ter partido com os Senhores Supremos, mas com que fim? Pois sabia, como ninguém tinha jamais sabido, que Karellen dissera a verdade, ao declarar que as estrelas não eram para o homem.
Deu as costas à noite e dirigiu-se para a vasta entrada da base dos Senhores Supremos. Seu tamanho não o afetava em nada; a imensidão já não tinha nenhum poder sobre seu espírito. As lâmpadas ardiam, vermelhas, alimentadas por energias que não se esgotariam tão cedo. De cada lado havia máquinas cujos segredos ele jamais desvendaria, abandonadas pelos Senhores Supremos em retirada. Passou por elas e subiu desajeitadamente os grandes degraus, até chegar à sala dos controles.
O espírito dos Senhores Supremos ainda continuava ali: suas máquinas ainda funcionavam, executando as ordens de seus donos agora distantes. Que poderia ele acrescentar, pensou Jan, às informações que elas estavam lançando ao espaço?
Subiu para a enorme cadeira e pôs-se tão à vontade quanto lhe era possível. O microfone, já ligado, estava a sua espera. Algo semelhante a uma câmara de televisão devia estar vigiando, mas Jan não conseguiu localizá-la.
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