Estava acima das nuvens, partilhando do céu com alguns pináculos de metal ou pedra. Qual um mar vermelho-rosado, a camada de nuvens rolava, lentamente, abaixo dele. Havia duas luas pálidas e minúsculas no céu, não longe do sol sombrio. Perto do centro daquele disco vermelho e inchado via-se uma pequena sombra escura, perfeitamente circular. Podia ser uma mancha solar ou uma outra lua em trânsito.
Jan foi avançando lentamente com o olhar ao longo do horizonte. A capa de nuvens estendia-se até a beira daquele mundo enorme, mas numa direção, a uma distância impossí- vel de se calcular, havia uma mancha sarapintada, que podia ser formada pelas torres de uma outra cidade. Fitou-a durante muito tempo e depois continuou a olhar.
Quando já tinha dado meia-volta, viu a montanha. Não estava contra o horizonte, mas além dele — um único pico serrilhado, erguendo-se por sobre a beirada do mundo, as vertentes mais baixas escondidas como a parte maciça de um iceberg se oculta sob a linha d'água. Mesmo num mundo com gravidade tão baixa quanto aquela, parecia difícil acreditar que tais montanhas pudessem existir. Seria possível que os Senhores Supremos praticassem esportes em suas vertentes e voassem, como águias, em torno daqueles imensos contrafortes?
Então, aos poucos, a montanha começou a mudar de forma. Quando ele a vira pela primeira vez, ela era de um vermelho fosco e quase sinistro, com algumas marcas junto ao cume, que ele não podia distinguir nitidamente. Estava procurando focalizá-las, quando percebeu que elas estavam se mexendo…
A princípio, não pôde acreditar no que via. Depois, lembrou-se de que todas as suas idéias preconcebidas de nada valiam ali; não podia permitir que sua mente rejeitasse qualquer mensagem que os sentidos levassem para a câmara oculta do cérebro. Não devia procurar entender — apenas observar. A compreensão viria mais tarde, ou não viria nunca.
A montanha — continuava a pensar nela como montanha, pois não sabia de nenhuma outra palavra que servisse para defini-la — parecia ter criado vida. Lembrou-se daquele olho monstruoso, em sua câmara subterrânea — mas, não, isso era inconcebível. Não estava olhando para a vida orgânica. Suspeitava, mesmo, que não se tratasse de matéria, tal e qual a conhecia.
O vermelho-escuro estava ficando mais claro, transformando-se num tom mais gritante. Faixas de amarelo-vivo surgiram e, por um momento, Jan pensou estar olhando para um vulcão que vomitasse correntes de lava para a terra abaixo dele. Mas aquelas correntes, como podia ver, pelas manchas que iam e vinham, estavam subindo.
Agora, uma outra coisa estava subindo das nuvens de rubi, que rodeavam a base da montanha. Era um anel gigante, perfeitamente horizontal e circular, e tinha a cor de tudo o que Jan deixara para trás, pois nunca os céus da Terra tinham sido mais azuis. Em nenhum outro lugar do mundo dos Senhores Supremos tinha ele visto tons como aqueles e teve que engolir em seco, tomado de uma saudade intensa e de um terrível sentimento de solidão.
O anel alargava-se, à medida que ia subindo. Estava agora mais alto do que a montanha e seu arco estendia-se rapidamente para ele. Sem dúvida, pensou Jan, deve ser uma espécie de vórtice — um anel de fumaça, com muitos quilômetros de diâmetro. Mas não redemoinhava, conforme ele esperava, e não parecia esfumar-se mais à medida que aumentava de tamanho.
Sua sombra projetou-se muito antes que o anel propriamente dito se espalhasse, majestosamente, sobre sua cabeça, continuando a subir no espaço. Jan ficou a vê-lo até ele se transformar num fiozinho azul, difícil de se distinguir em meio à vermelhidão do céu. Quando, por fim, desapareceu, já devia ter muitos milhares de quilômetros de diâmetro. E ainda estava crescendo.
Olhou para trás, para a montanha. Estava agora dourada e sem nenhuma marca. Talvez fosse obra da imaginação — a essa altura, ele já acreditava em tudo —, mas parecia-lhe mais alta e estreita, além de girar como o funil de um ciclone. Só então, ainda estonteado e com o raciocínio quase apagado, ele se lembrou de sua máquina fotográfica. Ergueu-a ao nível do olho e mirou aquele impossível, estarre-cedor enigma.
Vindarten colocou-se, rapidamente, na linha de visão. Com implacável firmeza, suas grandes mãos cobriram a lente e forçaram-no a abaixar a câmara. Jan não tentou sequer resistir; teria sido inútil, mas ele sentiu um súbito medo mortal daquela coisa na beira do mundo e não quis mais nada com ela.
Não houve nenhuma outra coisa, em suas viagens, que não o deixassem fotografar, e Vindarten nunca dava explicações. Ao contrário, passava muito tempo fazendo com que Jan descrevesse, em detalhes, tudo o que vira.
Foi então que Jan percebeu que os olhos de Vindarten haviam visto algo totalmente diferente; e foi quando ele suspeitou, pela primeira vez, que os Senhores Supremos também tinham seus senhores.
Agora, ele estava voltando para a Terra, e todo o espanto, medo e mistério tinham ficado para trás. A nave parecia-lhe a mesma, embora tivesse a certeza de que não era a mesma tripulação. Por mais longas que fossem suas vidas, era difícil acreditar que os Senhores Supremos se afastassem voluntariamente de seu planeta para fazer viagens interestelares que demoravam décadas.
O efeito de relatividade tempo-dilatação operava, naturalmente, em ambos os sentidos. Os Senhores Supremos só envelheceriam quatro meses na viagem de ida e volta, mas quando voltassem, seus amigos estariam oitenta anos mais velhos.
Se assim tivesse desejado, Jan sem dúvida poderia ter ficado lá para o resto da vida. Mas Vindarten prevenira-o de que não haveria outra nave para a Terra durante vários anos e aconselhara-o a aproveitar a viagem. Talvez os Senhores Supremos compreendessem que, mesmo naquele relativamente curto espaço de tempo, a mente de Jan quase chegara ao fim de sua capacidade de absorção. Ou talvez sua presença prolongada pudesse ter sido inconveniente e eles não quisessem gastar mais tempo com ele.
Agora, isso já não tinha importância, pois a Terra estava ao alcance de sua vista. Já a vira centenas de vezes do alto, mas sempre através do olho mecânico e remoto da câmara de televisão. Agora, por fim, ele estava em pleno espaço, completando o último ato de seu sonho, e a Terra girava, lá embaixo, em sua eterna órbita.
O grande crescente verde-azulado estava em quarto crescente: mais de metade do disco visível continuava imerso em escuridão. Havia poucas nuvens — alguns bancos, espalhados ao longo da linha de ventos alísios. A calota ártica refulgia, mas não tanto quanto o ofuscante reflexo de sol no Pacífico norte.
Quem não o conhecesse, teria pensado que aquele era um mundo de água; o hemisfério visível quase não tinha terras. O único continente visível era a Austrália, uma neblina mais escura em meio à névoa atmosférica que cercava o planeta.
A nave estava entrando no grande cone de sombra da Terra. O brilhante crescente tremulou, encolheu-se num arco de fogo e sumiu. Embaixo, reinavam a noite e a escuridão. O mundo dormia.
Foi então que Jan percebeu o que estava errado. Havia terra, lá embaixo, mas onde estavam os brilhantes colares de luzes, onde o coruscar ofuscante das cidades dos homens? Em todo aquele hemisfério às escuras, não havia uma única luz para afastar a noite. Como num passe de mágica, tinham desaparecido, sem deixar vestígio, os milhões de quilowatts que outrora rivalizavam com as estrelas. Parecia-lhe estar olhando para a Terra como ela devia ter sido antes da chegada do homem.
Aquele não era o regresso que ele esperara. Nada podia fazer a não ser olhar, enquanto o medo do desconhecido crescia dentro dele. Algo acontecera — algo inimaginável. E, contudo, a nave continuava a descer, formando uma longa curva, na direção do hemisfério iluminado pelo Sol.
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