Aparentemente, Joss estivera preparado para responder algumas frases atrás, com uma expressão de genuíno prazer a brilhar inesperadamente no rosto, mas o jorro de palavras de Ellie estava a adquirir balanço e talvez ele tivesse achado descortês interrompê-la.
— Além disso, por que haveriam vocês de pensar que Deus nos abandonou? Ele costumava conversar com patriarcas e profetas terça-feira sim, terça-feira não, segundo vocês acreditam. Ele é onipotente, dizem, e onisciente. Por conseqüência, não significaria nenhum esforço especial para ele recordar-nos diretamente, e sem ambigüidades, dos seus desejos, pelo menos algumas vezes em cada geração. Como se explica então, amigos? Por que não o vemos com cristalina clareza?
— Nós vemos. — Rankin encheu a frase de enorme sentimento. — Ele está a toda a nossa volta. As nossas orações são ouvidas. Dezenas de milhões de pessoas deste país renasceram e testemunharam a graça gloriosa de Deus. A Bíblia fala-nos tão claramente no tempo presente como falou no tempo de Moisés e Jesus.
— Oh, deixe-se disso! Sabe o que quero dizer. Onde estão as sarças ardentes, as colunas de fogo, a grande voz que diz «eu sou aquele que sou», a troar sobre nós vinda do Céu? Por que haveria Deus de se manifestar de maneiras tão sutis e controversas quando pode revelar-nos a sua presença completamente despida de ambigüidades?
— Mas uma voz vinda do Céu é precisamente o que você diz que descobriu — comentou Joss casualmente, enquanto Ellie fazia uma pausa para tomar fôlego, a fitá-la nos olhos.
Rankin aproveitou-se logo da idéia:
— Absolutamente. Era isso mesmo que eu ia dizer. Abraão e Moisés não tinham rádios nem telescópios. Não podiam ter ouvido o Todo-Poderoso falar em FM. Talvez hoje Deus nos fale de novas maneiras e nos permita ter uma nova compreensão. Ou talvez não seja Deus…
— Sim, Satanás. Ouvi algumas conversas a esse respeito. Parece-me loucura. Deixemos esse aspecto sossegado durante uns momentos, se não se importam. Pensam que talvez a Mensagem seja a voz de Deus, do vosso Deus. Onde, na vossa religião, responde Deus a uma prece reenviando-a para cá?
— Pessoalmente, não chamaria uma prece a uma notícia de televisão nazi — disse Joss. — Você disse que é para atrair a nossa atenção.
— Então por que pensa que Deus optou por falar com cientistas? Por que não com pregadores, como você?
— Deus fala comigo constantemente. — O indicador de Rankin bateu-lhe audivelmente no esterno. — E aqui, com o reverendo Joss. Deus disse-me que está iminente uma revelação. Quando o fim do mundo se aproximar, o êxtase cairá sobre nós, o julgamento dos pecadores, a ascensão ao Céu dos eleitos…
— Ele disse-lhe que ia anunciar isso no espectro do rádio? A sua conversa com Deus está registrada nalgum lado, para que possamos verificar que realmente ocorreu? Ou temos apenas a sua palavra? Por que escolheria Deus fazer o anúncio a radioastrônomos, e não a homens e mulheres do clero? Não acha um pouco estranho que a primeira mensagem de Deus em dois mil anos ou mais seja em números primos… e Adolf Hitler nas Olimpíadas de 1936? O seu Deus deve ter um grande sentido do humor.
— O meu Deus pode ter o sentido seja do que for que Lhe apeteça.
Der Heer sentia-se claramente alarmado com a primeira demonstração de verdadeiro rancor.
— Bem… talvez deva recordar a todos o que esperamos conseguir com este encontro… — começou.
Lá está o Ken na sua faceta apaziguadora, pensou Ellie. Nalguns problemas é corajoso, mas principalmente quando não tem nenhuma responsabilidade no tocante a ação. É um valente falador… na intimidade. Mas em política científica, e especialmente quando representa a presidente, torna-se muito acomodatício, mostra-se disposto a estabelecer um compromisso até com o próprio Diabo. Meteu travões aos pensamentos. A linguagem teológica estava a pegar-se-lhe…
— Isso é outra coisa — declarou, interrompendo a sua própria linha de pensamento, assim como a de Der Heer. — se aquele sinal é de Deus, por que razão vem apenas de um lugar no céu, nas imediações de uma estrela próxima particularmente brilhante? Por que não vem de todo o céu ao mesmo tempo, como a radiação de fundo do corpo negro cósmico? Vindo de uma estrela, parece um sinal de outra civilização. Vindo de todo o lado, pareceria muito mais um sinal do vosso Deus.
— Deus pode fazer com que um sinal venha do olho do cu da Ursa Menor, se quiser. — O rosto de Rankin estava a ficar muito vermelho. -Desculpe, mas irritou-me. Deus pode fazer tudo.
— Tudo quanto você não compreende, Mister Rankin, atribui-o a Deus. Deus, para si, é o tapete para debaixo do qual varre todos os mistérios do mundo, todos os desafios à sua inteligência. Não pode desligar pura e simplesmente o seu pensamento e dizer foi Deus que fez.
— Minha senhora, não vim aqui para ser insultado…
— Veio aqui? Julgava que vivia aqui.
— Minha senhora… — Rankin ia dizer qualquer coisa, mas mudou de idéias. Respirou fundo e continuou: — Este é um país cristão e os cristãos têm verdadeiro conhecimento desta questão, uma responsabilidade sagrada de se certificarem de que a sagrada palavra de Deus é compreendida…
— Eu sou cristã e o senhor não fala por mim. Fechou-se a si próprio numa espécie qualquer de mania religiosa do século V. Desde então aconteceu a Renascença, aconteceu o Iluminismo. Onde esteve metido?
Tanto Joss como Der Heer soergueram-se das cadeiras.
— Por favor — implorou Ken, a olhar diretamente para Ellie. — Se não se cingir mais à agenda, não vejo como conseguiremos cumprir o que a presidente nos pediu.
— Bem, queriam «uma troca de opiniões francas»…
— É quase meio-dia — lembrou Joss. — Por que não fazemos um pequeno intervalo para o almoço?
Fora da sala de conferências da biblioteca, encostada ao gradeamento que cercava o pêndulo de Foucault, Ellie iniciou uma breve conversa murmurada com Der Heer:
— Apetecia-me esmurrar aquele fanfarrão, aquele sabichão, aquele santarrão…
— Exatamente por quê, Ellie? Não são a ignorância e o erro suficientemente penosos?
— Sim, se ele calasse a boca. Mas ele está a corromper milhões.
— Queridinha, ele pensa o mesmo a teu respeito.
Quando ela e Der Heer regressaram do almoço, Ellie notou imediatamente que Rankin parecia subjugado, enquanto Joss, que foi o primeiro a falar, se mostrava alegre, sem dúvida para além dos requisitos da mera cordialidade.
— Doutora Arroway — começou —, compreendo que esteja impaciente para nos mostrar as suas descobertas e que não tenha vindo aqui para discussões teológicas. Mas, por favor, tenha um pouco mais de paciência conosco. Tem uma língua afiada. Não me recordo da última vez em que o Irmão Rankin tenha ficado tão agitado por questões de fé. Devem ter passado anos.
Olhou momentaneamente para o colega, que rabiscava, aparentemente distraído, num livro de apontamentos amarelo, com o colarinho desabotoado e a gravata desapertada.
— Fiquei surpreendido com uma ou duas coisas que a senhora disse esta manhã. Chamou a si mesma cristã. Permite a pergunta? Em que sentido é cristã?
— Sabe, isso não fazia parte da descrição do cargo quando aceitei a diretoria do Projeto Argus — respondeu ela, de ânimo leve. — Sou cristã no sentido em que considero Jesus Cristo uma figura histórica admirável. Penso que o Sermão da Montanha é uma das maiores declarações éticas e um dos melhores discursos da história. Penso que «ama o teu inimigo» pode até ser a surpreendente solução do problema da guerra nuclear. Gostaria que ele estivesse vivo hoje. Beneficiaria todos os habitantes do planeta. Mas penso que Jesus; foi apenas um homem. Um grande homem, um homem corajoso, um homem com uma percepção das verdades impopulares. Não penso, porém, que tenha sido Deus, ou o filho de Deus, ou o sobrinho-neto de Deus.
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