Havia quem considerasse escutar o sinal uma abominação e instigasse os observatórios a encerrarem; havia quem o considerasse um sinal do Advento e instigasse a construção de radiotelescópios ainda maiores, parte deles no espaço. Alguns desaconselhavam que se trabalhasse com os dados soviéticos, a pretexto de que podiam estar falsificados ou ser fraudulentos, embora nas longitudes de sobreposição coincidissem com os dados iraquianos, indianos, chineses e japoneses. E havia outros que tinham a percepção de uma mudança no clima político mundial e alegavam que a simples existência da Mensagem, mesmo que nunca fosse decifrada, estava a exercer uma influência estabilizadora nos estados das nações conflituosas. Como a civilização emissora era claramente mais avançada do que a nossa, e visto — pelo menos até há vinte e seis anos — ser claro que não se auto-destruíra, daí se depreendia, argumentavam alguns, que as civilizações tecnológicas não se auto-destruíam inevitavelmente. Com um mundo a experimentar hesitantemente importantes despojamentos de armas nucleares e dos seus sistemas de lançamento, a Mensagem era considerada por populações inteiras uma razão de esperança. Muitos consideravam-na a melhor notícia que houvera em muito tempo. Durante décadas, gente jovem tentara não pensar demasiado profundamente no amanhã. Agora talvez houvesse, no fim de contas, um futuro agradável.
Os que tinham predisposições para concordar com estes prognósticos animadores descobriam-se por vezes a resvalar desconfortavelmente para um terreno que fora ocupado durante uma década pelo movimento quiliasta. Alguns quiliastas afirmavam que a chegada iminente do Terceiro Milênio seria acompanhada pelo regresso de Jesus, ou de Buda, ou de Krishna, ou do Profeta, que estabeleceriam na Terra uma teocracia benévola, severa no seu julgamento dos mortais. Talvez isto pressagiasse a ascensão celeste dos eleitos. Mas havia outros quiliastas, e estes muito mais numerosos, que argumentavam que a destruição física do mundo era condição prévia indispensável do Advento, como fora infalivelmente predito em várias obras proféticas antigas, contraditórias noutros aspectos. Os Quiliastas do Juízo Final sentiam-se inquietos com o cheirinho de comunidade mundial que andava no ar e perturbados com o sistemático declínio anual dos arsenais globais de armas estratégicas. O meio mais prontamente disponível para o cumprimento da doutrina fulcral da sua fé estava a ser desmantelado dia a dia. Outras catástrofes candidatas — excesso populacional, poluição industrial, terremotos, explosões vulcânicas, aquecimento de estufa, eras glaciárias ou colisão cometária com a Terra — eram demasiado lentas, demasiado improváveis, ou insuficientemente apocalípticas para o fim em vista.
Alguns dirigentes quiliastas tinham garantido em comícios maciços de adeptos devotados que, a não ser para o caso de acidentes, o seguro de vida era um sinal de fé instável; que, a não ser para os muito idosos, a aquisição de um lugar para sepultamento ou a tomada de disposições para o funeral, em casos que não fossem de necessidade urgente, eram uma impiedade flagrante. Todos os que acreditavam subiriam corporeamente ao Céu e encontrar-se-iam perante o trono de Deus dentro de poucos anos apenas.
Ellie sabia que o famoso parente de Lunacharsky fora o mais raro dos seres, um revolucionário bolchevique com um interesse erudito pelas religiões mundiais. Mas a atenção de Vaygay, dirigida para o crescente fermento teológico à escala mundial, estava aparentemente emudecida. «A principal questão religiosa no meu país», disse, «será saber se os Veganianos denunciaram convenientemente Leão Trotsky.»
Ao aproximarem-se, das instalações Argus, a berma da estrada pareceu coalhada de automóveis estacionados, veículos de recreação, gente acampada, tendas e grandes multidões de pessoas. À noite, as outrora sossegadas planícies de San Augustin eram iluminadas por fogueiras. As pessoas que se encontravam ao longo da auto-estrada não eram de modo nenhum todas gente próspera. Ellie reparou em dois jovens casais. Os homens vestiam T-shirts e jeans desbotadas, com cinto à volta dos quadris, gingavam um pouco, como tinham sido ensinados pelos colegas mais velhos quando tinham entrado para o liceu, e falavam animadamente. Um deles empurrava um escaqueirado carrinho de bebê no qual estava sentado um miúdo despreocupado dos seus dois anos de idade. As mulheres seguiam atrás dos maridos, uma delas a dar a mão a uma criança recém-iniciada na arte humana de andar e a outra empinada para a frente, pelo que, dentro de um mês ou dois, seria mais uma vida nascida neste obscuro planeta.
Havia místicos de comunidades isoladas no exterior de Taos que usavam psilocibina como sacramento e freiras de um convento próximo de Albuquerque que utilizavam etanol para o mesmo fim. Havia homens de pele coriácea e olhos enrugados que tinham passado toda a sua vida ao ar livre e estudantes amarelentos, ratos de biblioteca da Universidade do Arizona, em Tucson. Havia gravatas de seda e cordões de prata polida vendidos por empresários navajos por preços exorbitantes, no que constituía uma pequena inversão das relações comerciais históricas entre americanos brancos e nativos. Tabaco de mascar e pastilha elástica de fazer balão eram vigorosamente exibidos por soldados da Base da Força Aérea de Davis-Monthan em gozo de licença. Um homem de cabelo branco elegantemente vestido, ostentando um fato de novecentos dólares e um chapéu de aba larga de cor condizente, era, provavelmente, um rancheiro. Havia gente que vivia em barracas e arranha-céus, tugúrios de adobe, dormitórios e parques de caravanas. Uns estavam ali porque não tinham nada melhor que fazer; outros, porque queriam dizer aos netos que ali unham estado. Uns chegavam a desejar o fracasso; outros confiavam em que iam ser testemunhas de um milagre. Sons de serena devoção, ruidosa hilaridade, êxtase místico e expectativa contida erguiam-se da multidão para a brilhante luz da tarde. Algumas cabeças viravam-se para olhar sem curiosidade a caravana de automóveis que passavam, cada um deles identificado com as palavras PARQUE AUTOMÓVEL DO GOVERNO DOS EUA.
Algumas pessoas almoçavam no taipal da retaguarda de camionetas; outras provavam as especialidades de vendedores cujos empórios sobre rodas ostentavam grandes letreiros: SNACKMOBILE ou RECORDAÇÕES ESPACIAIS. Havia longas bichas defronte de pequenas e toscas estruturas com capacidade de ocupação máxima de uma pessoa e que o Projeto tivera a boa idéia de fornecer. Crianças cirandavam entre veículos, sacos de dormir, cobertores e mesas de piquenique articuladas, quase nunca repreendidas pelos adultos — a não ser quando se aproximavam demasiado da auto-estrada ou da cerca mais próxima do Telescópio 61, onde um grupo de jovens adultos de cabeça rapada, vestes cor de açafrão, ajoelhados e a tocar no solo com a cabeça, entoavam a sílaba sagrada «Om». Havia cartazes com representações imaginárias de seres extraterrestres, algumas delas popularizadas pelas histórias aos quadradinhos ou pelo cinema. Um dizia: «Há alienígenas entre nós.» Um homem de brincos de ouro fazia a barba, servindo-se do espelho lateral da furgoneta de qualquer pessoa, e uma mulher de cabelo preto e poncho ergueu uma chávena de café numa saudação à passagem veloz do cortejo de automóveis.
Quando seguiam na direção do novo portão principal, Perto do Telescópio 101, Ellie viu um jovem num estrado improvisado a arengar a uma multidão razoável. O homem usava uma T-shirt com uma imagem da Terra a ser atingida por um raio celestial. Ela reparou que várias outras pessoas da multidão usavam o mesmo adorno enigmático. A insistência sua, depois de transposto o portão, afastaram-se do lado da estrada, desceram a janela e escutaram. O orador estava de costas para eles e podiam ver os rostos da multidão. Esta gente está profundamente emocionada, pensou Ellie.
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