Der Heer parecia ligeiramente alarmado.
— Bem, doutora Arroway, a sugestão do secretário Kitz não é assim tão desrazoável. É muito possível que colaboremos com outras nações. Tudo quanto ele pede é que converse primeiro conosco acerca do assunto. E isso apenas se houver uma nova mensagem.
O seu tom era tranqüilizador, mas não untuoso. Ela olhou-o de novo com atenção. Der Heer não era um homem claramente bonito, mas tinha um rosto bondoso e inteligente. Vestia fato azul e camisa impecável. O calor do seu sorriso moderava a sua seriedade e o seu ar de autodomínio. Por que motivo estava ele, então, a manifestar-se a favor daquele imbecil? Fazia parte do seu trabalho? Seria possível que Kitz estivesse a falar com lógica?
— De qualquer modo, trata-se de uma contingência remota. — Kitz suspirou enquanto se levantava. — O secretário da Defesa apreciaria a sua cooperação. — Estava a tentar mostrar-se cativante. — Combinado?
— Deixe-me pensar no assunto — respondeu ela, e apertou-lhe a mão estendida como se fosse um peixe morto.
— Eu vou já, daqui a poucos minutos, Mike — disse Der Heer, sorridente.
Com a mão na ombreira da porta, Kitz deu a impressão de que lhe acudia um pensamento novo, tirou um documento da algibeira interior do peito, voltou para trás e colocou-o desajeitadamente no canto da secretária dela.
— Ah, sim, já me esquecia! Está aqui uma cópia da Decisão Hadden. Provavelmente conhece-a. É acerca do direito do Governo de considerar secreto material vital para a segurança dos Estados Unidos. Mesmo que a sua origem não tenha ocorrido numa instituição secreta.
— Quer tornar secretos os números primos? — perguntou ela, de olhos muito abertos, numa incredulidade irônica.
— Espero por si lá fora, Ken.
Ellie começou a falar logo que Kitz saiu do seu gabinete:
— Que fareja ele? Raios letais de Vega? Alguma coisa que faça ir o mundo pelos ares? De que se trata, na realidade?
— Ele está apenas a ser prudente, Ellie. Percebo que você não ache que seja só isso. Muito bem. Suponha que há alguma mensagem — com verdadeiro conteúdo, compreende? E nela existe alguma coisa ofensiva para muçulmanos, por exemplo, ou para metodistas. Não deveríamos divulgá-la cuidadosamente, para que os Estados Unidos não ficassem com um olho negro?
— Ken, não me venha com tretas. Aquele homem é um assistente do secretário da Defesa. Se eles estivessem preocupados com muçulmanos ou metodistas, ter-me-iam enviado um assistente do secretário de Estado, ou — não sei — um desses fanáticos religiosos que presidem a pequenos-almoços presidenciais de orações. Você é o conselheiro científico da presidente. Que lhe aconselhou?
— Não lhe aconselhei nada. Desde que estou aqui, só falei com ele uma vez, brevemente, pelo telefone. E serei franco consigo: ele não me deu instruções nenhumas a respeito de sigilo. Na minha opinião, o que Kitz disse não tem fundamento. Ele está a agir por sua conta.
— Quem é ele?
— Tanto quanto sei, é um advogado. Foi um importante executivo na indústria eletrônica antes de entrar para a administração. Conhece realmente o C3i, mas isso não o torna entendido em mais nada.
— Ken, confio em si. Acredito que não me tenha exposto a esta ameaça com a Decisão Hadden. — Apontou para o documento à sua frente e fez uma pausa, a procurar os olhos dele. — Sabe que Drumlin pensa que existe outra mensagem na polarização?
— Não compreendo.
— Há poucas horas, o Dave concluiu uma primeira análise estatística da polarização. Representou os parâmetros de Stokes por esferas de Poincaré; há um belo movie delas com variações no tempo.
Der Heer olhava-a inexpressivamente. Não usariam os biólogos luz polarizada nos seus microscópios? — perguntou Ellie a si mesma.
— Quando uma onda de luz se dirige para nós — luz visível, luz-rádio, qualquer espécie de luz —, vem a vibrar em ângulo reto em relação à nossa linha de visão. Se essa vibração gira, diz-se que a onda é «elipticamente polarizada». Se gira no sentido dos ponteiros do relógio, chama-se «polarização de sentido direito»; se gira no sentido inverso ao dos ponteiros do relógio, chama-se «polarização de sentido esquerdo». Bem sei que é uma designação estúpida. Seja como for, variando entre as duas espécies de polarização, podemos transmitir informação. Um pouco de polarização de sentido direito, e é um zero; um pouco de sentido esquerdo, e é um um. Está a perceber? É perfeitamente possível. Temos modulação de amplitude e modulação de freqüência, mas a nossa civilização, por convenção, geralmente não faz modulação de polarização.
«Bem, o sinal de Vega dá a impressão de ter modulação de polarização. Neste preciso momento estamos empenhados em verificar isso. Mas o Dave descobriu que não havia uma quantidade igual das duas espécies de polarização. Não era tão levopolarizada quanto dextropolarizada. É simplesmente possível que exista outra mensagem na polarização que até agora nos escapou. É por isso que desconfio do seu amigo. Kitz não veio apenas dar-me conselhos gratuitos generalizados. Sabe que podemos ter tropeçado em mais qualquer coisa.
— Tenha calma, Ellie. Há quatro dias que quase não dorme. Tem andado a fazer malabarismos com a ciência, a administração e a imprensa. Já fez uma das grandes descobertas do século e, se bem a entendi, pode estar na iminência de algo ainda mais importante. Tem todo o direito de estar um pouco impaciente. E ameaçar militarizar o projeto foi desastroso da parte de Kitz. Não tenho dificuldade nenhuma em compreender que desconfie dele. Mas há uma certa lógica no que ele diz.
— Você conhece o indivíduo?
— Tenho estado nalgumas reuniões com ele. Não posso dizer verdadeiramente que o conheço. Ellie, se existe a possibilidade de chegar uma autêntica mensagem, não seria boa idéia tornar a multidão menos densa?
— Com certeza. Dê-me uma ajuda no caso dos tipos inúteis de Washington.
— Muito bem. E se deixar esse documento em cima da sua secretária, pode entrar aqui alguém e tirar as conclusões erradas. Por que não o guarda em qualquer lado?
— Você vai ajudar?
— Se a situação permanecer semelhante ao que é agora, ajudarei. Não faremos os nossos melhores esforços se esta coisa for declarada secreta.
Sorrindo, Ellie ajoelhou diante do pequeno cofre do seu gabinete e carregou na combinação de seis dígitos: 314159, lançou um último olhar ao documento, que tinha por título, em grandes letras pretas, OS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA VS. HADDEN CYBERNETICS, e fechou-o no cofre.
Era um grupo de cerca de trinta pessoas — técnicos e cientistas ligados ao Projeto Argus e alguns funcionários governamentais superiores, incluindo o diretor-adjunto da Defence Intelligence Agency, vestido à paisana. Entre eles contavam-se Valerian, Drumlin, Kitz e Der Heer. Ellie era a única mulher. Tinham instalado um grande sistema de projeção de televisão, focado num écran de dois por dois metros, perfeitamente encostado à parede do fundo. Ellie dirigia-se simultaneamente ao grupo e ao programa descriptografador, com os dedos no teclado à sua frente.
— Ao longo dos anos preparamo-nos para descriptografar por computador muitas espécies de possíveis mensagens. Acabamos de saber pela análise do doutor Drumlin que há informação na modulação de polarização. Todo aquele frenético desvio entre esquerda e direita significa qualquer coisa. Não é ruído ao acaso. É como se atirássemos uma moeda ao ar. Claro que esperamos que calhem tantas caras como cunhos, mas, em vez disso, obtemos o dobro das caras em relação aos cunhos. Concluímos por isso que a moeda está viciada ou, no nosso caso, que a modulação de polarização não é acidental; tem conteúdo… Oh, vejam isto! O que o computador acaba de nos dizer é ainda mais interessante. A seqüência exata de caras e cunhos repete-se. É uma longa seqüência e, por isso, é uma mensagem muito complexa e a civilização emissora deve querer que nos asseguremos de que a entendemos corretamente.
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