Em Lys, poderia um dia encontrar aquilo que desejava. Havia em sua gente um calor e uma compreensão que, compreendia agora, faltavam em Diaspar. Mas antes de poder repousar, antes de poder encontrar a paz, havia ainda uma decisão a ser tomada.
Em suas mãos caíra o poder. E ele ainda possuía esse poder. Era uma responsabilidade que ele procurava e aceitara com ardor, mas agora sabia que não poderia ter paz enquanto aquela responsabilidade lhe pesasse nos ombros. No entanto, abandoná-la seria trair uma confiança…
Ele estava numa aldeia de pequeninos canais, à beira de um vasto lago, quando tomou a decisão. As casas coloridas, que pareciam flutuar, ancoradas, sobre as ondas suaves, formavam uma cena de beleza quase irreal. Havia ali vida, calor e conforto — tudo que ele sentira não existir em meio à grandiosidade inóspita dos Sete Sóis.
Um dia a humanidade estaria novamente pronta para o espaço. Qual novo capítulo a humanidade escreveria entre as estrelas, Alvin não sabia. Isso não seria preocupação sua, seu futuro estava ali, na Terra.
Contudo, realizaria mais um vôo antes de voltar as costas às estrelas.
Quando Alvin conteve o ímpeto ascendente da nave, a cidade estava distante demais para ser reconhecida como obra humana, e já se percebia a curva do planeta. Daí a pouco puderam ver a linha do crepúsculo, a milhares de quilômetros de distância, em sua marcha interminável sobre o deserto. Acima e em torno deles estendiam-se as estrelas, ainda brilhantes, apesar de toda a glória que haviam perdido.
Hilvar e Jeserac mantinham-se em silêncio, adivinhando, mas sem saberem com certeza, por que Alvin estava fazendo aquele vôo e por que lhes pedira que o acompanhassem. Nenhum deles se sentia disposto a falar, enquanto contemplavam o panorama desolado. O vazio oprimia a ambos, e Jeserac sentiu de repente fúria e desprezo pelos homens do passado, que haviam deixado a beleza da Terra morrer devido à sua própria negligência.
Esperava que Alvin estivesse certo em seu sonho de que tudo isso pudesse ser modificado. Ainda existiam o poder e o conhecimento — restava apenas o desejo de voltar atrás nos séculos e fazer os oceanos agitarem-se de novo. A água ainda estava lá, bem oculta nas profundezas da Terra, ou, se necessário, poder-se-iam construir usinas de transmutação para produzi-la.
Havia muito o que fazer nos anos à frente. Jeserac sabia que se encontrava entre duas épocas, em torno de si, podia sentir a pulsação da humanidade acelerar-se outra vez. Havia grandes problemas a enfrentar, mas Diaspar podia arrostá-los. A reconstrução do passado duraria séculos, mas quando estivesse terminada o Homem teria recuperado quase tudo quanto perdera.
No entanto, poderia reconquistar tudo? Era difícil acreditar que a Galáxia viesse a ser recuperada — e, mesmo que se conseguisse isso, para que serviria?
Alvin interrompeu seu devaneio, e Jeserac desviou os olhos da tela.
— Eu queria que vocês vissem isso — disse Alvin calmamente. — Talvez nunca tenham outra oportunidade.
— Você vai deixar a Terra?
— Não. Nada quero com o espaço. Mesmo que outras civilizações ainda sobrevivam nesta Galáxia, duvido que valham o esforço de encontrá-las. Há muito o que fazer aqui. Sei agora que este é meu lar, e não vou abandoná-lo novamente.
Alvin olhou para os grandes desertos, mas o que seus olhos viam eram as águas que estariam rolando sobre eles dentro de mil anos. O homem redescobrira seu mundo e o tornaria belo enquanto vivesse ali. E depois disso…
— Não estamos prontos para sair rumo às estrelas, e muito tempo se passará antes de podermos enfrentar o desafio outra vez. Estive imaginando o que deveria fazer com esta nave. Se ela permanecer aqui na Terra, sempre estarei tentado a usá-la, e jamais terei paz de espírito. Entretanto, não posso perdê-la. Sinto que ela me foi confiada, e devo usá-la em benefício do mundo.
«Por isso, decidi o seguinte. Vou mandá-la sair da Galáxia, entregue ao comando do robô, a fim de descobrir o que aconteceu a nossos ancestrais… e, se possível, o que pretendiam encontrar quando deixaram nosso Universo. Deve ter sido algo de maravilhoso para que abandonassem tantas coisas.»
«O robô nunca se cansará, por mais que dure a viagem. Um dia nossos primos receberão minha mensagem, e saberão que estamos à espera deles aqui na Terra. Eles voltarão, e espero que já então sejamos merecedores deles, por maiores que se tenham tornado.»
Alvin calou-se, fitando um futuro a que ele dera forma, mas que possivelmente nunca veria. Enquanto o Homem estivesse reconstruindo seu mundo, aquela nave estaria cruzando a escuridão entre as Galáxias, e dentro de milênios retornaria. Talvez ele ainda estivesse ali para reencontrá-la, mas mesmo que isso não ocorresse ele estava satisfeito.
— Acho que você procede bem — disse Jeserac. Então, pela última vez, ressoou o eco de um medo antigo, atormentando-o. — Mas suponhamos — acrescentou — que a nave estabeleça contacto com alguma coisa que não desejamos encontrar… — Aos poucos, sua voz silenciou, enquanto reconhecia a fonte de sua ansiedade e sorria, banindo com esse sorriso o último fantasma dos Invasores.
— Você se esquece — disse Alvin, levando-o mais a sério do que esperava — que em breve teremos Vanamonde para ajudar-nos. Não sabemos quais seus poderes, mas todos em Lys parecem crer que são potencialmente ilimitados. Não á isso, Hilvar?
Hilvar não respondeu imediatamente. Era verdade que Vanamonde constituía o outro grande enigma, o ponto de interrogação que perpetuamente se interporia no caminho da humanidade, enquanto ela habitasse a Terra. Parecia seguro dizer que a evolução de Vanamonde rumo à consciência de si mesmo já fora acelerada por seu contacto com os filósofos de Lys. Tinham grandes esperanças de cooperação futura com a supermente infantil, acreditando poderem reduzir os tempos fantásticos que seu desenvolvimento natural exigiria.
— Não tenho certeza — confessou Hilvar. — Por algum motivo, não acho que devamos esperar demais de Vanamonde. Podemos ajudá-lo agora, mas seremos apenas um breve incidente em sua vida total. Não creio que seu destino final tenha qualquer coisa a ver conosco.
Alvin olhou-o com surpresa.
— Por que pensa assim? — perguntou.
— Não sei explicar — disse Hilvar. — Trata-se apenas de uma intuição. — Poderia ter acrescentado mais coisas, mas preferiu silenciar. Esses assuntos não eram passíveis de comunicação, e ainda que Alvin não fosse rir de seu sonho Hilvar não se dispunha a discuti-lo, nem mesmo com o amigo.
Era algo mais que um sonho, ele tinha certeza disso, e era uma coisa que o perseguiria para sempre. De alguma forma, havia penetrado em sua mente durante aquele contacto indescritível e incompartilhável que tivera com Vanamonde. Porventura saberia o próprio Vanamonde qual deveria ser seu destino solitário?
Algum dia, as energias do Sol Negro chegariam ao fim e ele libertaria seu prisioneiro. E então, ao fim do Universo, quando o próprio Tempo estivesse cambaleante, prestes a se deter, Vanamonde e a Mente Louca deveriam encontrar-se frente a frente, entre os cadáveres das estrelas.
Esse conflito poderia fazer descer o pano sobre a própria Criação. No entanto, tratava-se de um conflito que nada tinha a ver com o Homem, e cujo resultado ele nunca viria a conhecer…
— Vejam! — bradou Alvin subitamente. — Era isso que eu queria mostrar a vocês. Compreendem o que significa?
A nave estava agora sobre o Pólo, e o planeta abaixo deles era um hemisfério perfeito. Contemplando a faixa de crepúsculo, Jeserac e Hilvar puderam ver, ao mesmo tempo, tanto a aurora como o pôr-do-sol dos dois lados do mundo. O simbolismo era tão perfeito, e de tal forma notável, que eles jamais esqueceriam aquele momento, por mais que vivessem.
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