Arthur C. Clarke
A Cidade e as Estrelas
Tradutor: Donaldson Garschagen
Título original em inglês:
THE CITY AND THE STARS
Arthur C. Clarke, 1956
EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.
Rio de Janeiro — 1979
Estamos a mais de um milhão de anos no futuro. Por que ninguém mais se lembra dos outros seres inteligentes que o homem viu no Universo? O computador, que domina os segredos do espaço e do tempo, talvez saiba a resposta. É ele que mantém a última cidade sobre a Terra e a povoa com seres humanos nascidos em provetas. Mas por que ele permitiu o nascimento de um homem sem medo do desconhecido? Por que ele permitiu que só esse homem descobrisse o fantástico destino do Universo?
Arthur Charles Clarke nasceu na Inglaterra em 1917. Aos 20 anos, lançou uma revista de ficção científica, a Novae Terrae, publicando contos que antecipavam o futuro (descreveu a chegada do homem à Lua imaginando técnicas parecidas com as que seriam usadas décadas depois). Durante a Segunda Guerra Mundial trabalhou como radiotécnico na Força Aérea Britânica, aperfeiçoando um sistema de radar que foi muito útil aos Aliados. Em 1945, publicou um texto que antecipava em mais de 20 anos a comunicação via satélite. Depois da Guerra, formou-se em Física e Matemática, ganhando a vida como editor-assistente da revista Science Abstracts. Em 1951 publicou seu primeiro romance de ficção científica, As Areias de Marte. Depois de passar algum tempo casado com a norte-americana
Marilyn Mayfield (de quem se divorciou em 1964), mudou-se para o Sri Lanka (antigo Ceilão), uma ilha nas costas da índia. Vive com uma família amiga (um mergulhador, ex-pugilista, sua esposa e filhos), cercado de avançadíssima tecnologia (computadores, barcos que andam sobre água e sobre terra com auxílio de colchões de ar, etc). Apaixonado pela informática, pelas telecomunicações, pelos mergulhos submarinos e pelas pesquisas sobre vida extraterrena, Arthur Clarke tornou-se famoso em 1969, quando um livro seu foi adaptado para o cinema por Stanley Kubrick: 2001: uma Odisséia no Espaço. Autor de mais de 50 obras de ficção científica, ganhou renome internacional pela clareza de seu estilo (a descrição que ele faz dos modernos progressos da ciência e da tecnologia é sempre viva, acessível e correta) e pela profundidade de suas idéias (a necessidade do progresso espiritual como condição da própria sobrevivência do homem é seu tema central). A Cidade e as Estrelas (obra de 1956) é um exemplo de seu talento: a concepção do mundo descrita nesse livro é ousadíssima (estamos a mais de um milhão de anos no futuro) e toda ela verossímil (é um futuro que o progresso da tecnologia pode tornar possível). Outros livros: Encontro com Rama, Terra Imperial, Histórias de Dez Mundos, O Fim da Infância, As Fontes do Paraíso, Sobre o Tempo e as Estrelas, A Sonda do Tempo, 2010: uma Odisséia no Espaço II, Os Náufragos do Selene (Editora Nova Fronteira).
Para Val
Como jóia fulgurante, a cidade jazia sobre o seio do deserto. No passado, havia conhecido mudanças e inovações, mas agora tudo estava imóvel no tempo. Noites e dias passavam sobre a face do deserto, mas nas ruas de Diaspar era sempre crepúsculo, e a escuridão jamais chegava. As longas noites de inverno cobriam o deserto de geada, ao se congelar a última umidade caída no ar rarefeito da Terra — mas a cidade não sofria calor ou frio. Não tinha contato com o mundo exterior. Era, em si mesma, um universo.
O Homem já havia construído cidades, mas nunca uma cidade como aquela. Algumas haviam durado séculos, outras, milênios — antes que o tempo apagasse até mesmo seus nomes. Só Diaspar havia desafiado a Eternidade, defendendo-se a si mesma, e a tudo quanto ela reunia, do desgaste moroso das eras, dos estragos da decadência e da corrupção da ferrugem.
Desde sua construção, os oceanos da Terra já haviam desaparecido e o deserto tinha passado a abranger todo o globo. As últimas montanhas tinham sido reduzidas a pó pelos ventos e pela chuva e o mundo achava-se demasiado cansado para produzir outras, novas. A cidade, porém, não se preocupava: mesmo que a Terra se consumisse, Diaspar ainda seria capaz de proteger os filhos daqueles que a haviam edificado, salvando, a eles e a seus tesouros, do fluxo do tempo.
Haviam-se esquecido de muitas coisas, mas não o percebiam. Estavam tão ajustados ao meio ambiente em que viviam como este a eles — pois tinham sido projetados em conjunto. O que existia além dos muros da cidade não lhes interessava, era algo que tinha sido como que varrido de suas mentes. Diaspar encerrava tudo quanto existia, tudo de que necessitavam, tudo que seriam capazes de imaginar. Não lhes importava saber que um dia o Homem havia sido senhor das estrelas.
Contudo, às vezes os antigos mitos se levantavam para os perseguir, e eles se sentiam desagradavelmente perturbados à lembrança das lendas do Império, quando Diaspar era jovem e extraía sua seiva do comércio com muitos sóis. Não queriam a volta dos tempos antigos, estavam felizes e satisfeitos com o eterno outono. As glórias do Império eram coisa do passado, e lá podiam ficar — pois recordavam-se perfeitamente de como o Império havia encontrado seu fim, e ao pensarem nos Invasores o próprio frio do espaço lhes gelava os ossos.
E então voltavam-se mais uma vez para a vida e para o aconchego da cidade, para a longa idade áurea cujas origens já se achavam perdidas e cujo fim nem se vislumbrava a distância. Outros homens haviam sonhado com essa idade, mas somente eles a haviam alcançado.
E isso porque tinham vivido na mesma cidade, caminhando pelas mesmas ruas, milagrosamente imutáveis, enquanto mais de um bilhão de anos transcorriam.
Tinham levado muitas horas abrindo caminho para fora da Caverna dos Vermes Brancos. Ainda agora não poderiam estar seguros de que não os perseguiam um daqueles monstros pálidos — e a força de suas armas já se havia quase esgotado. Mais adiante, ainda acenavam para eles as setas flutuantes que lhes haviam servido de misterioso guia através dos labirintos da Montanha de Cristal. Não lhes restava outra alternativa senão segui-las, ainda que, como acontecera tantas vezes antes, elas pudessem conduzi-los a perigos ainda mais funestos.
Alvin olhou rapidamente para trás, tentando verificar se os companheiros estavam próximos. Alystra, quase junto dele, carregava a esfera de luz fria mas permanente que havia mostrado tantos horrores e esplendores desde o início daquela aventura. O brilho branco e esmaecido escorria pelo corredor estreito e se espalhava pelas paredes cintilantes, enquanto durava, podiam ver para onde caminhavam e lhes era possível perceber a presença de qualquer perigo visível. No entanto, Alvin sabia muito bem que os maiores perigos naquelas cavernas de modo algum eram os que se podiam ver.
Atrás de Alystra, lutando com o peso dos projetores, vinham Narillian e Floranus. Alvin ficou a imaginar por que os projetores seriam tão pesados, já que teria sido tão simples muni-los com neutralizadores de gravidade. Alvin nunca parava de pensar nessa espécie de coisas, mesmo no meio das aventuras mais desesperadas. Quando pensamentos assim passavam por sua cabeça, era como se a estrutura da realidade começasse a ruir por um instante, e que por trás do mundo dos sentidos ele colhesse o lampejo de outro universo, inteiramente diferente…
O corredor terminava numa parede branca. Teria a seta os enganado de novo? Não, pois ao se aproximarem a rocha começou a transformar-se em pó. Através da parede surgiu um lingote metálico que, rodopiando, logo se transformou num gigantesco parafuso. Alvin e seus amigos voltaram atrás, esperando que a máquina forçasse entrada na caverna. Com um ruído tonitruante de metal sobre rocha — que decerto ecoaria por todos os desvãos da Montanha e despertaria toda sua raça de pesadelos — a subterráquea emergiu da parede e veio repousar aos pés deles. Abriu-se uma porta maciça e surgiu Callistron, gritando que se apressassem. («Por que Callistron?», pensou Alvin. «Que estará ele fazendo aqui?») Logo depois estavam em segurança, e a máquina saltou adiante ao dar início à sua jornada pelas entranhas da Terra.
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