Alvin imaginava o que aconteceria a Diaspar — e a Lys — quando as barreiras estivessem inteiramente destruídas. De alguma forma, os melhores elementos de ambas as culturas deveriam ser salvos e fundidos numa cultura nova e mais saudável. Tratava-se de uma tarefa hercúlea, que demandaria toda a sabedoria e toda a paciência que cada pessoa pudesse pôr a serviço da empresa.
Algumas dessas dificuldades já surgiam. Os visitantes de Lys tinham-se recusado, polidamente, a habitar as casas que lhes haviam sido destinadas na cidade. Haviam-se instalado no Parque, num ambiente que lhes lembrava Lys. Hilvar foi a única exceção, embora não lhe agradasse morar numa casa com paredes indeterminadas e mobiliário efêmero, valentemente aceitou a hospitalidade de Alvin, consolado pela promessa de que não ficariam muito tempo ali.
Hilvar jamais se sentira solitário em toda sua vida, mas em Diaspar ele conheceu a solidão. A cidade lhe era mais estranha do que Lys fora para Alvin, e ele se sentia oprimido e esmagado por sua infinita complexidade e pelas miríades de estranhos que pareciam congestionar cada palmo de espaço a seu redor. Ele conhecia, ainda que superficialmente, todos os habitantes de Lys, quer já houvesse conversado com eles quer não. Nem em mil vidas, porém, poderia vir a conhecer todos os que viviam em Diaspar, e, ainda que percebesse tratar-se de uma sensação irracional, sentia-se vagamente deprimido. Somente sua lealdade para com Alvin o mantinha ali, num mundo que nada mostrava de comum com o seu próprio.
Muitas vezes já tentara analisar seus sentimentos em relação a Alvin. A amizade que sentia por ele brotava, sabia bem, da mesma fonte que inspirava sua atração por todas as criaturas pequenas e inermes. Isso teria surpreendido aqueles que viam em Alvin um moço resoluto, obstinado e egocêntrico, dispensando afeto de quem quer que fosse e rejeitando-o sempre, mesmo quando oferecido desprendidamente.
Hilvar, contudo, conhecia melhor a verdade. Percebera, instintivamente, desde o começo, que Alvin era um explorador, e todos os exploradores estão à procura de alguma coisa que perderam. Raramente a encontram, e mais raramente ainda a descoberta lhes proporciona mais alegria do que a procura.
O que Alvin estava procurando, Hilvar o ignorava. Era impelido por forças que haviam sido acionadas há eras, pelos homens geniais que tinham planejado Diaspar com tanta habilidade distorcida — ou pelos homens de gênio ainda maior que lhes haviam feito objeção. Como todo ser humano, Alvin era em certa medida uma máquina, sendo suas ações predeterminadas por sua herança. Isso não alterava sua necessidade de compreensão e afeto, nem o tornava infenso à solidão ou à frustração. Para sua própria gente, era uma criatura tão inexplicável que às vezes se esqueciam de que ele ainda partilhava as mesmas emoções deles. Era preciso um estranho, de um meio inteiramente diverso, para vê-lo como outro ser humano.
Alguns dias após ter chegado a Diaspar, Hilvar já encontrara mais pessoas do que em toda sua vida. Encontrara-as sem chegar a conhecer praticamente ninguém. Por estarem tão juntos, os habitantes da cidade mantinham uma reserva difícil de penetrar. A única privacidade que conheciam era a da mente, e eles se lhe apegavam mesmo enquanto cumpriam as intermináveis atividades sociais de Diaspar. Hilvar sentia pena deles, embora soubesse que não tinham necessidade alguma de sua compaixão. Não percebiam o que não tinham — não poderiam entender a cálida sensação de comunidade, a sensação de participação que a todos congregava na sociedade telepática de Lys. Com efeito, embora fossem bastante polidos para ocultá-lo, era óbvio que a maioria das pessoas com quem ele falava olhava-o com compaixão, acreditando estar diante de alguém que levava uma vida incrivelmente tediosa e vazia.
Eriston e Etania, os guardiões de Alvin, foram desde logo vistos por Hilvar como nulidades corteses, inteiramente vazias. Achava muito estranho ouvir Alvin referir-se a eles como pai e mãe — palavras que em Lys ainda conservavam seu antigo sentido biológico. Era necessário um contínuo esforço de imaginação para lembrar que as leis da vida e da morte tinham sido recusadas pelos construtores de Diaspar, e por momentos parecia a Hilvar que, apesar de toda a atividade que se desenrolava a seu redor, a cidade parecia vazia, pois não possuía crianças.
Hilvar pensava no que aconteceria a Diaspar, agora que seu longo isolamento chegara ao fim. A melhor coisa que a cidade poderia fazer, concluiu, seria destruir os bancos de memória, que a haviam mantido em transe por tanto tempo. Por mais miraculosos que fossem — talvez o supremo triunfo da ciência que os produzira —, eram criações de uma cultura doente, uma cultura que tivera medo de muitas coisas. Alguns desses temores se haviam baseado na realidade, ao passo que outros, era-se levado a crer, fundamentavam-se apenas na imaginação. Hilvar sabia um pouco do que estava surgindo da exploração da mente de Vanamonde. Daí a alguns dias, Diaspar também saberia — e descobriria que grande parte de seu passado não passara de um mito.
No entanto, se os bancos de memória fossem destruídos, dentro de mil anos a cidade estaria morta, pois as pessoas haviam perdido a capacidade de se reproduzir. Tratava-se de um dilema que tinha de ser encarado de frente, mas Hilvar já percebera uma solução possível. Sempre havia uma resposta para qualquer problema técnico, e sua gente era senhora das ciências biológicas. O que fora feito podia ser desfeito, se Diaspar assim desejasse.
Primeiro, entretanto, a cidade teria de aprender o que perdera. Sua educação levaria muitos anos — talvez muitos séculos. Mas já estava começando, muito em breve, o impacto da primeira lição abalaria Diaspar tão profundamente como o próprio contato com Lys.
Isso também abalaria Lys. Apesar de toda a diferença entre as duas culturas, haviam nascido das mesmas raízes — e haviam compartilhado as mesmas ilusões. Ambas seriam mais saudáveis quando voltassem a olhar, com calma e determinação, para o passado que haviam perdido.
O anfiteatro fora projetado para conter toda a população de Diaspar, e praticamente nenhum de seus dez milhões de lugares se achava desocupado. Contemplando a grande curva, de seu ponto de observação, bem no alto, Alvin lembrou-se irresistivelmente de Shalmirane. As duas crateras tinham a mesma forma, e quase o mesmo tamanho. No caso de se encher a cratera de Shalmirane com pessoas, a visão seria bastante semelhante à que se descortinava agora diante de si.
Não obstante, havia uma diferença fundamental entre as duas, a grande depressão de Shalmirane existia, aquele anfiteatro, não. Nunca existira, era apenas um fantasma, um padrão de cargas elétricas que dormitava na memória do Computador Central até que houvesse necessidade de convocá-lo. Alvin sabia que na realidade ainda se encontrava em seu quarto, e que toda aquela multidão que parecia cercá-lo estava também em seus próprios quartos. Desde que não tentasse sair daquele ponto, a ilusão era perfeita. Podia acreditar que Diaspar fora abolida e que todos seus cidadãos haviam sido reunidos ali, naquela enorme cavidade.
Nem uma só vez em mil anos a vida da cidade parará assim, para que toda sua população pudesse reunir-se em Assembléia Geral. Também em Lys, Alvin sabia, estava ocorrendo o equivalente àquela reunião. Haveria um encontro de mentes, mas talvez associado a ele haveria uma reunião de corpos, tão imaginaria quando aquela, mas igualmente real em aparência.
Alvin reconheceu a maioria dos rostos a seu redor, até os limites da visão a olho nu. A quase dois quilômetros de distância, e a trezentos metros abaixo, estava a pequena arena sobre a qual se concentrava agora a atenção de todos. Era difícil acreditar que ele pudesse enxergar alguma coisa a tal distância, mas Alvin sabia que, quando o discurso começasse, ouviria e veria tudo que acontecesse tão bem como qualquer outra pessoa de Diaspar.
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