Ele não sabia, mal podiam acreditar nele, e o desapontamento que sentiram transpôs nítida e claramente o abismo que separava suas mentes da dele. Mas eram pacientes e ele estava satisfeito em poder ajudá-los, pois procuravam a mesma coisa e lhe proporcionavam a primeira companhia que ele jamais tivera.
Alvin acreditava que, enquanto vivesse, jamais passaria novamente por uma experiência tão estranha como aquela conversa silenciosa. Era difícil que ele pudesse ser pouco mais do que espectador, pois não se importava de admitir, mesmo para si próprio, que a mente de Hilvar era em muitos sentidos bem mais ágil do que a sua. Só lhe cabia esperar e admirar-se, meio atordoado pela torrente de imagens mentais, situada além dos limites de sua compreensão.
Daí a pouco, pálido e cansado, Hilvar interrompeu a conversa e voltou-se para o amigo.
— Alvin, há alguma coisa estranha aqui — disse, com expressão fatigada. — Não estou entendendo nada.
A informação em parte restabeleceu a autoconfiança de Alvin, e sua fisionomia deve ter traduzido o que ele sentia, pois Hilvar sorriu de repente.
— Não consigo descobrir o que é esse… Vanamonde… — ele continuou. — E uma criatura de tremendo conhecimento, mas parece ter pouquíssima inteligência. E claro — acrescentou — que seu cérebro pode ser de uma espécie tão diferente que não conseguimos compreendê-lo… no entanto, por alguma razão, não creio que seja a explicação correta.
— Bem, o que foi que você descobriu? — perguntou Alvin, com certa impaciência. — Ele sabe alguma coisa a respeito dos Sete Sóis?
Hilvar ainda parecia ter a mente muito longe.
— Foram construídos por muitas raças, inclusive a nossa — respondeu distraidamente. — Ele me fornece informações desse tipo, mas parece não compreender o que significam. Acho que tem consciência do passado, mas não tem capacidade para interpretá-lo. Tudo que já aconteceu parece estar amontoado em sua mente.
Hilvar fez uma pausa momentânea, depois seu rosto iluminou-se.
— Só há uma coisa a fazer, de uma maneira ou de outra, tenho de levar Vanamonde à Terra, para que nossos filósofos possam estudá-lo.
— Seria seguro? — perguntou Alvin.
— Sim — disse Hilvar, pensando em como a observação do amigo era descabida. — Vanamonde é amistoso. Mais do que isso, na verdade parece carinhoso.
E de repente, a idéia que durante todo aquele tempo estivera pairando sobre a orla da consciência de Alvin definiu-se claramente. Ele se lembrou de Krif e de todos os animais que estavam continuamente fugindo, para aborrecimento ou alarme dos amigos de Hilvar. E lembrou-se — como parece distante no passado! — do objetivo zoológico que determinara a expedição a Shalmirane.
Hilvar encontrara um novo animal de estimação.
Há apenas alguns dias, pensava Jeserac, aquela conferência seria simplesmente inconcebível. Os seis visitantes de Lys estavam sentados diante do Conselho, numa mesa que fechava a abertura da ferradura. Era irônico lembrar que há pouco tempo Alvin estivera sentado no mesmo lugar, ouvindo o Conselho determinar que Diaspar seria fechada novamente ao mundo. Agora, o mundo se abatera sobre a cidade, vingativo — não só o mundo, mas todo o Universo.
O próprio Conselho já estava modificado. Aquela reunião faltavam nada menos de cinco de seus membros. Tinham sido incapazes de enfrentar as responsabilidades e problemas com que agora se confrontavam, e seguiram o mesmo caminho escolhido por Khedron. Isso, pensava Jeserac — o fato de tantos de seus cidadãos serem incapazes de encarar o primeiro desafio real em milhões de anos —, era prova de que Diaspar fracassara. Muitos milhares deles já haviam fugido para o breve oblívio dos bancos de memória, na esperança de que, quando despertassem, a crise tivesse passado e Diaspar voltado a ser o que sempre fora. Ficariam decepcionados.
Jeserac fora convocado para preencher um dos lugares vagos no Conselho. Ainda que ele estivesse ali contrafeito, devido à sua posição como tutor de Alvin, sua presença era tão claramente essencial que ninguém sugerira sua exclusão. Estava sentado numa das extremidades da mesa em forma de ferradura, posição que lhe dava várias vantagens. Não só podia estudar os perfis de seus visitantes, como podia também ver os rostos de todos os companheiros de Conselho — e suas expressões eram bastante instrutivas.
Sem dúvida, Alvin estivera certo e o Conselho estava lentamente tomando consciência da verdade desagradável. A delegação de Lys era capaz de pensar muito mais depressa do que os homens mais inteligentes de Diaspar. E não era essa sua única vantagem, pois demonstravam também um elevado grau de coordenação, que, segundo Jeserac acreditava, deveria estar relacionado com seus poderes telepáticos. Ficou a imaginar se estariam lendo os pensamentos dos Conselheiros, mas concluiu que não violariam sua promessa solene, sem a qual aquela reunião teria sido impossível.
Jeserac não acreditava que houvessem feito muitos progressos, aliás, não imaginava como poderiam fazer. O Conselho, que a custo havia aceito a existência de Lys, ainda parecia incapaz de compreender o que acontecera. Mas estava claramente assustado — como também estavam, ele julgava, os visitantes, embora conseguissem ocultar bem melhor o susto.
O próprio Jeserac não estava tão aterrorizado como previra, ainda pressentia seus medos, mas finalmente os havia encarado de frente. Algo da temeridade — ou seria coragem? — do próprio Alvin começara a modificar sua perspectiva e abrir-lhe novos horizontes. Não se supunha capaz de jamais pôr os pés fora de Diaspar, mas agora compreendia o impulso que levara Alvin a assim proceder.
A pergunta do Presidente pegou-o desprevenido, mas ele se recuperou rapidamente.
— Acho — disse — que foi por simples casualidade que essa situação nunca surgiu antes. Sabemos que anteriormente houve quatorze Únicos, e deve também ter havido algum plano definido por trás de sua criação. Esse plano, creio, era o de assegurar que Lys e Diaspar não permanecessem separados para sempre. Alvin tomou a si essa aproximação, mas também fez uma coisa que, acredito, não constava do plano original. Poderia o Computador Central confirmar isso?
A voz impessoal respondeu imediatamente.
— O Conselheiro sabe que não posso comentar as instruções que me foram dadas por meus construtores.
Jeserac aceitou a leve reprimenda.
— Seja como for, não podemos discutir os fatos. Alvin viajou para o espaço. Quando voltar, os senhores poderão impedi-lo de sair novamente… conquanto duvido de que venham a ter êxito, já que ele terá aprendido muitas coisas a essa altura. E, se aquilo que os senhores temem aconteceu, não há nada que possamos fazer a respeito. A Terra está inteiramente indefesa… e isso há milhões de séculos.
Jeserac fez uma pausa e percorreu as mesas com o olhar. Suas palavras não haviam agradado a ninguém, nem ele esperara que agradassem.
— Contudo, não vejo por que devemos ficar alarmados. A Terra não corre maior perigo agora do que sempre correu. Por que dois homens, sozinhos numa pequena nave, provocariam sobre nós a ira dos Invasores? Se formos honestos, teremos de admitir que os Invasores poderiam ter destruído nosso mundo há muitas eras.
Houve um silêncio desaprovador. Isso era heresia — e no passado o próprio Jeserac a teria condenado como tal. O Presidente interrompeu, franzindo a testa.
— Não conta uma lenda que os Invasores pouparam a Terra em troco de promessa que o Homem nunca mais voltaria ao espaço? E não violamos agora essas condições?
— Uma lenda, sim — disse Jeserac. — Aceitamos muitas coisas sem contestação, e essa é uma delas. Contudo, não há disso prova alguma. Acho difícil acreditar que qualquer coisa dessa magnitude não ficasse registrada nas memórias do Computador Central, e no entanto ele não tem nenhum conhecimento desse pacto. Já lhe perguntei, ainda que somente através das máquinas de informação. Talvez o Conselho se digne a fazer a pergunta diretamente.
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