Jeserac não via qualquer razão para se arriscar a uma segunda admoestação por avançar em território proibido, e esperou pela resposta do Presidente.
Não houve resposta, pois nesse momento os visitantes de Lys subitamente puseram-se de pé, com as fisionomias congeladas em expressões de incredulidade e alarme. Pareciam estar ouvindo alguma voz distante que despejava sua mensagem em seus ouvidos.
Os Conselheiros esperaram, com sua própria apreensão crescendo minuto a minuto, enquanto prosseguia a conversa silenciosa. Então, o líder da delegação arrancou-se de seu transe e voltou-se para o Presidente, como se pedisse desculpas.
— Acabamos de receber notícias muito estranhas e inquietantes de Lys — disse.
— Alvin voltou à Terra? — quis saber o Presidente.
— Não… Alvin não. Uma outra coisa.
Enquanto fazia sua fiel nave pousar na clareira de Airlee, Alvin imaginava se em toda a história humana uma nave já trouxera à Terra carga semelhante — isso, na verdade, se Vanamonde estivesse localizado no espaço físico da máquina. Não tinha sido visto qualquer sinal dele na viagem, Hilvar acreditava, e seu conhecimento era mais direto, que somente a esfera de atenção de Vanamonde possuía alguma posição no espaço. O próprio Vanamonde não se localizava em parte alguma — talvez nem mesmo em tempo algum.
Seranis e cinco Senadores estavam à sua espera quando saíram da nave. Um dos Senadores já era conhecido de Alvin, dois outros que haviam participado da reunião por ocasião de sua última visita estavam agora em Diaspar, segundo ele entendeu. Ficou a imaginar como a delegação se sentiria, e como a cidade havia reagido à presença dos primeiros intrusos em tantos milhões de anos.
— Queremos crer, Alvin — disse Seranis, secamente, depois de haver saudado o filho —, que você é um verdadeiro gênio para descobrir entidades extraordinárias. Ainda assim, acho que vai passar muito tempo antes que você consiga superar sua façanha de agora.
Dessa vez foi Alvin quem se surpreendeu.
— Quer dizer que Vanamonde já chegou?
— Sim, há várias horas. De alguma forma ele conseguiu reconstituir a trajetória de sua nave, no caminho de ida… uma façanha extraordinária em si mesma, e que levanta interessantes problemas filosóficos. Há alguns indícios de que ele chegou a Lys no momento em que você o descobriu, de modo que é capaz de velocidades infinitas. E isso não é tudo. Nas últimas horas, ele nos ensinou mais história do que julgávamos poder existir.
Alvin olhou Seranis, atônito. Depois entendeu, não era difícil imaginar qual teria sido o impacto de Vanamonde sobre aquela gente, com suas percepções agudas e suas mentes maravilhosamente entrelaçadas. Haviam reagido com surpreendente rapidez, e de repente ele formou uma imagem incongruente de Vanamonde, talvez um tanto assustado, cercado pelos ávidos intelectos de Lys.
— Descobriram o que ele é? — perguntou Alvin.
— Sim. Isso foi simples, ainda que não saibamos qual sua origem. Ele é pura mentalidade, e seu conhecimento parece ilimitado. Mas é infantil, e estou usando esse termo em sua acepção mais literal.
— Claro! — exclamou Hilvar. — Eu devia ter adivinhado!
Alvin fez uma expressão de pasmo, e Seranis sentiu pena dele.
— Quero dizer que, embora Vanamonde possua uma mente colossal, talvez infinita, é imaturo e subdesenvolvido. Sua inteligência real é menor que a de um ser humano — aqui ela sorriu de maneira estranha —, ainda que seus processos mentais sejam muito mais rápidos e ele aprenda rapidamente. Além disso, dispõe de certos poderes que não compreendemos. Todo o passado parece aberto à sua mente, de uma forma difícil de descrever. Ele pode ter usado essa capacidade para seguir seu caminho à Terra.
Alvin ficou em silêncio, um pouco atemorizado. Compreendeu a correção da decisão de Hilvar de trazer Vanamonde a Lys. E percebeu como tivera sorte em algum dia ter podido ludibriar Seranis, isso não era coisa que ele pudesse fazer duas vezes na vida.
— Você quer dizer — perguntou — que Vanamonde acabou de nascer?
— Pelos padrões dele, sim. Sua idade cronológica é enorme, ainda que aparentemente menor que a do homem. O notável é que ele insiste em que fomos nós que o criamos, e não resta dúvida de que sua origem está relacionada a todos os grandes mistérios do passado.
— O que está acontecendo a Vanamonde agora? — perguntou Hilvar, num tom ligeiramente possessivo.
— Os historiadores de Grevarn o estão interrogando. Tentam mapear os principais delineamentos do passado, mas a tarefa levará anos. Vanamonde é capaz de descrever o passado com pormenores exatos, mas não compreende o que vê. E dificílimo trabalhar com ele.
Alvin ficou a imaginar como Seranis saberia de tudo isso, depois percebeu que provavelmente todas as almas de Lys estavam acompanhando o progresso da grande pesquisa. Sentiu orgulho ao perceber que agora havia deixado em Lys marca tão forte quanto em Diaspar, no entanto, a esse orgulho misturava-se certa frustração. Havia ali uma coisa que jamais poderia partilhar inteiramente, nem compreender: o contato direto, mesmo entre mentes humanas, era para ele mistério tão grande quanto a música devia ser para o surdo, ou a cor para o cego. No entanto, os habitantes de Lys estavam agora trocando pensamentos com aquele ser inimaginavelmente alienígena, cuja vinda para a Terra fora provocada por ele, mas a quem nunca poderia atingir, com nenhum de seus sentidos.
Não havia lugar para ele ali, quando a investigação estivesse concluída, as respostas lhe seriam comunicadas. Ele abrira as portas do infinito, e agora sentia pasmo — até medo — por tudo quanto fizera. Para sua própria paz de espírito, devia voltar ao mundo minúsculo e familiar de Diaspar, ali buscando refúgio, enquanto ponderava seus sonhos e sua ambição. Havia uma ironia nisso, aquele que acicatara a cidade a se aventurar por entre as estrelas voltava para casa como uma criança assustada volta correndo para a mãe.
Diaspar não demonstrou nenhuma surpresa ao rever Alvin. A cidade ainda estava agitada, como uma gigantesca colméia que tivesse sido violentamente remexida. Ainda relutava em enfrentar a realidade, mas aqueles que se recusavam a admitir a existência de Lys e do mundo exterior já não tinham onde ocultar-se. Os bancos de memória haviam deixado de aceitá-los, aqueles que procuravam apegar-se a seus sonhos e buscar refúgio no futuro entravam agora em vão na Casa da Criação. A chama dissolvente, sem calor, recusava-se a saudá-los, já não despertavam, com as mentes lavadas, cem mil anos abaixo no rio do tempo. Os apelos ao Computador Central de nada valiam, nem ele explicava a razão de seus atos. Os pretensos refugiados tinham de retornar pesarosamente à cidade, obrigados a enfrentar os problemas de seu tempo.
Alvin pousara na periferia do Parque, nas proximidades do Palácio do Conselho. Até aquele último momento, não tinha certeza de que poderia levar a nave a entrar na cidade, atravessando quaisquer escudos que fechassem seu céu do mundo exterior. O firmamento de Diaspar, como tudo mais na cidade, era artificial, pelo menos em parte. Não se permitia nunca que a noite, com seu manto de estrelas, lembranças de tudo quanto o Homem havia perdido, se intrometesse na cidade, protegida também das tempestades que por vezes se abatiam sobre o deserto e enchia o céu de nuvens de areia.
Os guardiões invisíveis deixaram Alvin passar e ele viu a cidade estendida a seus pés. Por mais que o Universo e seus mistérios o atraíssem, aquele era o lugar onde havia nascido e a que pertencia. A cidade nunca o satisfaria, mas ainda assim voltaria sempre. Atravessara metade da Galáxia para aprender essa verdade simples.
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