A minha primeira impressão foi de estar sentado perto do palco de um teatro… ou melhor, no próprio palco, tão perto estavam os actores. Parecia que se estendêssemos a mão lhes tocaríamos. Estava com sorte, pois tratava-se de uma história do meu tempo: por outras palavras, um drama histórico. Os anos em que a acção tinha lugar não eram exactamente especificados, mas a julgar por certos pormenores tratava-se de uma ou duas décadas depois da minha partida.
Fiquei imediatamente encantado com o guarda-roupa. O cenário era naturalista, mas diverti-me por essa mesma razão, pois encontrei um grande número de erros e de anacronismos. O herói, um homem atraente e moreno, de cabelo castanho, saiu de casa em trajo de cerimónia (a cena passava-se de manhã cedo) e foi de carro encontrar-se com a sua amada. Levava até chapéu alto, mas cinzento, como se fosse um inglês a cavalgar no Derby. Mais tarde, apareceu uma estalagem romântica à beira da estrada, com um estalajadeiro como eu nunca vira — parecia um pirata. O herói sentou-se nas abas do casaco e bebeu cerveja por uma palhinha, etc.
De súbito, deixei de sorrir. Aen entrara. Vestia de modo absurdo, mas isso tornou-se irrelevante. O espectador sabia que ela amava outro e andava a enganar o jovem. O papel típico e melodramático da mulher traiçoeira, sentimentalismo, cliché. Mas Aen fazia-o de modo diferente. Era uma rapariga cabeça-no-ar, afectuosa e, em virtude da ilimitada ingenuidade da sua crueldade, uma criatura inocente que levava infelicidade a toda a gente porque não queria tomar ninguém infeliz Quando caía nos braços de um homem esquecia-se do outro, e fazia-o de tal maneira que acreditámos na sua sinceridade, de momento.
Mas todos aqueles disparates eram incoerentes, não se aguentavam, e só restava Aen, a grande actriz.
O real era mais do que apenas um filme, pois sempre que me concentrava em qualquer parte da cena esta tomava-se maior, expandia-se. Por outras palavras, o próprio espectador, por escolha própria, decidia se veria um close-up ou a imagem toda. Entretanto, o que restava na periferia do seu campo de visão não sofria qualquer distorção. Tratava-se de um truque óptico diabolicamente inteligente que produzia uma ilusão de uma realidade exraordinariamente viva, quase ampliada.
Depois fui para o meu quarto acondicionar as minhas coisas, pois partiria dentro de minutos. Afinal, tinha mais coisas do que imaginara. Ainda não estava pronto quando o telefone me anunciou que o meu ulder estava à espera.
— Desço num minuto — respondi.
O robot carregador levou as minhas malas e eu ia a sair quando o telefone tocou de novo. Hesitei. O sinal suave repetiu-se incansavelmente. «Para que não pareça que fujo», pensei enquanto levantava o auscultador, embora não tivesse bem a consciência do motivo por que o fazia.
— É você?
— Sou. Está levantada?
— Há muito tempo. Que está a fazer?
— Vi-a. No real.
— Sim? — Foi tudo quanto ela disse, mas eu apercebi-me da satisfação da sua voz, que significava: é meu.
— Não — disse.
— Não o quê?
— Pequena, é uma grande actriz. Mas eu não sou de modo nenhum a pessoa que imagina.
— Também imaginei a noite passada? — interrompeu-me.
Na sua voz havia uma tremura de riso e, de súbito, o ridículo voltou. Não pude evitá-lo: o quacre das estrelas que caíra uma vez, grave, desesperado e modesto.
— Não — respondi, a controlar-me —, não a imaginou. Mas eu vou-me embora.
— Para sempre?
Ela estava a divertir-se com a conversa.
— Pequena… — comecei, mas não soube que acrescentar; durante um momento ouvi-lhe apenas a respiração.
— E que se segue?
— Não sei. — Corrigi-me imediatamente: — Nada. Vou-me embora. Não tem senso nenhum…
— Absolutamente nenhum — concordou. — Mas é por isso que pode ser esplêndido. Que viu? Os Sinceros?
— Não. A Fiancée. Escute…
— É uma autêntica bomba. Não posso nem vê-la. Foi a pior coisa que fiz. Veja Os Sinceros… ou melhor, venha cá esta noite. Eu mostro-lho. Não, hoje não posso. Amanhã.
— Aen, não irei. Parto realmente dentro de um minuto…
— Não me trate por Aen, trate-me por «pequena» — pediu.
— Pequena, vá para o Inferno!
Pousei o auscultador, senti-me envergonhadíssimo comigo próprio, voltei a levantá-lo e a pousá-lo. Saí do quarto a correr, como se fosse alguém atrás de mim. Em baixo disseram-me que o ulder estava no telhado. Tive, portanto, de subir.
No telhado havia um jardim-restaurante e um aeroporto. Na realidade, tratava-se de um restaurante-aeroporto, uma mistura de níveis, plataformas voadoras e janelas invisíveis… Não teria encontrado o meu ulder nem num ano. Mas conduziram-me a ele, praticamente pela mão. Era mais pequeno do que supusera. Perguntei quanto tempo demoraria o voo, pois tencionava ler alguma coisa.
— Cerca de doze minutos.
Não valia a pena começar a ler nada. O interior do ulder lembrou-me o foguetão Thermo-Fax que eu pilotara em tempos, com a diferença de que era mais confortável. Mas quando a porta se fechou, enquanto o robot me desejava uma viagem agradável, as paredes tomaram-se imediatamente transparentes, e como eu me sentara no primeiro dos quatro lugares (os outros não estavam ocupados) tive a impressão de voar numa poltrona montada dentro de um grande copo.
É engraçado, mas o ulder não tinha nada em comum com um foguetão ou um aeroplano; lembrava mais um tapete voador. O peculiar veículo moveu-se primeiro verticalmente, sem a mínima vibração e emitindo um longo assobio, e depois acelerou horizontalmente, como uma bala.
Verificou-se de novo o que já observara uma vez antes: a aceleração não era acompanhada por ura aumento da inércia. Na primeira vez, na estação, julgara-me vítima de uma ilusão; agora, porém, tinha a certeza. É difícil exprimir por palavras o que senti. É que, se eles tinham de facto conseguido tornar a aceleração independente da inércia, então todas as hibernações, todos os testes, todas as selecções, dificuldades e frustrações da nossa viagem tinham sido completamente inúteis. Por isso, naquele momento, era como o conquistador de algum pico do Himalaia que, depois da indescritível dificuldade da subida, descobre que no cume há um hotel cheio de turistas, porque durante o seu labor solitário foi instalado do lado oposto um teleférico e arcadas de divertimentos. O facto de que, se tivesse permanecido na Terra, provavelmente não teria vivido para assistir àquela extraordinária descoberta constituía pequena consolação para mim: uma consolação seria saber que talvez aquele invento não se pudesse aplicar à navegação cósmica. Era, evidentemente, puro egoísmo da minha parte, admito, mas o choque foi tão grande que não me deixou mostrar o entusiasmo devido.
Entretanto, o ulder voava, agora silenciosamente. Olhei para baixo. Estávamos a passar pelo Terminal. Ficou lentamente para trás, uma fortaleza de gelo. Nos níveis superiores, não visíveis da cidade, viam-se enormes plataformas pretas de fançamento de foguetões. Depois voámos relativamente perto da torre-pináculo, a que tinha faixas pretas e prateadas, e vi que se erguia acima do ulder. Da Terra não se podia avaliar a sua altura. Era uma ponte de tubo que unia a cidade e o céu e as «prateleiras» que irrompiam dela estavam cheias de ulders e de outros veículos maiores. As pessoas que se encontravam nessas faixas de aterragem pareciam sementes de papoula espalhadas numa salva de prata. Voámos sobre colónias de casas brancas e azuis e sobre jardins. As ruas foram-se tomando cada vez mais largas e com as superfícies também coloridas: predominavam o rosa-pálido e o ocre. Um mar de edifícios estendia-se até ao horizonte, ocasionalmente interrompido por faixas verdes, e eu receei que continuasse assim até Clavestra. Mas o veículo acelerou, as casas afastaram-se, dispersaram-se entre os jardins, e em vez delas começaram a aparcer enormes drculos e extensões rectas de estradas que corriam em numerosos níveis, se fundiam e entrecruzavam, mergulhavam debaixo do chão e convergiam em forma de estrelas, ou partiam em tiras ao longo de uma planura verde-cinzenta, debaixo do sol alto e coalhada de gleeders. Então, no meio de quadrângulos de árvores, emergiram grandes estruturas com telhados do formato de espelhos concávos, no centro dos quais ardia qualquer coisa vermelha. Mais adiante, as estradas separaram-se e o verde prevaleceu, aqui e ali interrompido por quadrados de vegetação diferente, vermelha e azul. Não podiam ser flores, pois as cores eram demasiado intensas.
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