“Em meus argumentos finais, gostaria de examinar cuidadosamente a estrutura do caso da procuradoria. Nos depoimentos do primeiro dia, foram todos irrelevantes quanto às acusações contra mim e, creio eu, permitidos pelo juiz Nakamura em clara violação das leis da colônia que se ocupam de testemunhos em casos de ofensas capitais…” “Sra. Wakefield”, interrompeu zangado o juiz Nakamura, “como já lhe disse antes esta semana, não posso tolerar comentários tão desrespeitosos em meu tribunal. Mais uma declaração desse gênero e não só será culpada de desrespeito à corte como também terminarei definitivamente seus argumentos finais.”
“Durante todo aquele dia a promotoria tentou demonstrar que minha moralidade sexual era questionável, e que portanto eu de algum modo me tornava candidata provável a envolvimento com conspiração política. Senhoras e senhores, teria prazer em discutir com os senhores as circunstâncias pouco comuns associadas à concepção de cada um de meus seis filhos. No entanto, minha vida sexual, passada, presente ou até mesmo futura não tem a menor relevância para este caso. A não ser por seu possível valor como entretenimento, os testemunhos do primeiro dia não tiveram o menor sentido.”
Houve alguns risinhos nas galerias apinhadas, mas os guardas logo calaram a multidão. “O grupo seguinte de testemunhas”, continuou Nicole, “gastou muitas horas implicando meu marido em atividades sediciosas. Confesso abertamente que sou casada com Richard Wakefield. Porém, sua culpa ou ausência dela, na verdade, também não tem a menor importância para este julgamento. Só provas que supostamente me tornem culpada de sedição são relevantes aqui para o seu veredicto.
“A promotoria sugeriu que meus atos sediciosos originaram-se com meu envolvimento com o vídeo que eventualmente resultou na criação desta colônia.
Reconheço que eu realmente ajudei na preparação do vídeo transmitido de Rama para a Terra, porém nego categoricamente que tenha “conspirado desde o início com os alienígenas” ou tenha conspirado com os extraterrestres que construíram esta espaçonave contra meus irmãos humanos.
“Participei da feitura do vídeo, como indiquei ontem quando permiti que o promotor me interrogasse, porque senti que não tinha alternativa. Minha família e eu estávamos nas mãos de uma inteligência e de um poder muito além de qualquer coisa que qualquer de nós pudéssemos jamais imaginar. Sentíamos grande preocupação com a possibilidade de a recusa em concordar com seus pedidos de ajuda com o vídeo pudesse resultar em represálias contra nós.”
Nicole voltou à mesa da defesa rapidamente e bebeu um pouco de água.
Depois virou-se e tornou a encarar o júri. “Isso deixa apenas duas fontes possíveis para qualquer evidência que me condenem por sedição — o testemunho de minha filha Katie e aquela estranha gravação de áudio, uma coleção sem pé nem cabeça de comentários feitos por mim a outros membros de minha família depois de presa, que os senhores ouviram ontem pela manhã.
“Os senhores sabem muito bem como gravações desse tipo podem ser distorcidas e manipuladas. Os dois principais técnicos de áudio admitiram aqui, no banco das testemunhas, que haviam ouvido centenas de horas de conversas entre meus filhos e eu antes de conseguir produzir trinta minutos de “provas comprometedoras”, sendo que em momento algum mais do que dezoito segundos consecutivos foram tomados de uma mesma conversa. Dizer que meus comentários ali gravados foram apresentados fora de contexto é o mínimo que se pode dizer sobre eles.
“Em relação ao testemunho de minha filha Katie Wakefield só posso dizer, com profunda tristeza, que ela mentiu repetidamente em suas afirmações originais. Eu jamais tive conhecimento dessas supostas atividades ilegais de meu marido, e certamente jamais o ajudei nas mesmas.
“Hão de lembrar-se de que, ao ser interrogada por mim, Katie ficou confusa quanto aos fatos e acabou repudiando seu testemunho inicial, antes de desmaiar no banco das testemunhas. O juiz os havia advertido de que minha filha em tempos recentes vinha tendo saúde mental precária, e que deveriam ignorar comentários feitos por ela sob pressão emocional durante meu interrogatório. Eu lhes imploro que se lembrem de cada palavra dita por Katie, não só quando o promotor a interrogava, mas também durante o tempo no qual eu estava tentando obter dela datas e locais específicos para as ações sediciosas que ela me havia atribuído.”
Nicole aproximou-se do júri uma última vez, estabelecendo cuidadosamente contato com cada um deles. “Em última análise, os senhores têm de julgar onde está a verdade deste caso. Eu os encaro de coração pesado, sem acreditar mesmo agora na série de acontecimentos que me levaram a ser acusada desses crimes gravíssimos. Eu servi bem à colônia e à espécie humana. Não sou culpada das acusações que me são feitas. Todo e qualquer poder ou inteligência que exista neste espantoso universo há de reconhecer tal fato, a despeito do resultado deste julgamento.”
A luz lá fora estava diminuindo rapidamente. Contemplativa, Nicole encostou-se na parede de sua cela, imaginando se aquela seria sua última noite de vida. Teve um tremor involuntário. Desde o anúncio do veredicto, Nicole ia dormir todas as noites esperando morrer no dia seguinte.
A Garcia trouxe-lhe o jantar logo depois que escureceu. A comida tinha sido muito melhor nos últimos dias. Enquanto comia seu peixe grelhado, Nicole refletiu sobre os cinco anos desde que ela e sua família receberam a primeira equipe exploratória da Pinta. O que fora que dera errado aqui? indagou-se Nicole.
Quais foram nossos erros fundamentais?
Ela podia ouvir a voz de Richard em sua cabeça. Sempre cínico e sem confiança no comportamento humano, ele sugerira no final do primeiro ano que o Novo Éden fosse bom demais para a humanidade. “Eventualmente, nós o arruinaremos, como fizemos com a Terra”, disse ele. “Nossa bagagem genética — tudo aquilo, sabe, territorialismo e agressão e comportamento de réptil — é forte demais para que a educação e o esclarecimento possam derrotar. Veja só os heróis de O’Toole, ambos, Jesus e aquele jovem italiano, S. Miguel de Siena.
Foram destruídos porque sugeriram que os humanos deveriam tentar ser mais do que chimpanzés espertos.”
Mas aqui, no Novo Éden, pensou Nicole, havia tantas oportunidades para um mundo melhor. As necessidades básicas da vida eram fornecidas pela colônia.
Vivíamos cercados por uma prova incontestável de que existia no universo uma inteligência muito mais adiantada do que a nossa. Isso deveria ter produzido um ambiente no qual…
Ela terminou seu peixe e puxou para si o pequeno pudim de chocolate.
Nicole sorriu, lembrando-se o quanto Richard gostava de chocolate. Tenho sentido tanta falta dele. Em especial de sua conversa e percuciência. Nicole surpreendeu-se ao ouvir passos vindos na direção da cela. Um profundo arrepio de medo cruzou-lhe o corpo. Seus visitantes eram dois jovens, cada um carregando uma lanterna. Usavam o uniforme da polícia especial de Nakamura.
Os homens entraram na cela com modos muito profissionais. Não se apresentaram. O mais velho, provavelmente aí por uns 35 anos, rapidamente puxou de um documento legal e começou a lê-lo. “Nicole de Jardins Wakefield”, disse ele, “você foi condenada pelo crime de sedição e será executada amanhã às 8:00h. Seu desjejum será servido às 6:30h, dez minutos depois da primeira luz do dia, e nós viremos buscá-la para a execução às 7:30h. Você será amarrada à cadeira elétrica às 7:58h, e a corrente será aplicada exatamente dois minutos mais tarde… Tem alguma pergunta?”
O coração de Nicole estava batendo com tal velocidade que ela mal conseguia respirar. Lutou para se acalmar. “Tem alguma pergunta?”, repetiu o policial.
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