Harlan não podia deixar passar a verdadeira exultação da voz do Computador. Naquele momento ele obviamente se sentiu suficientemente vitorioso para acreditar que mesmo uma chicotada neurônica o deixaria no lado proveitoso do resultado.
Por quê? Seria a bancarrota de Harlan tão cara para seu coração? Seria o seu ciúme por Noys uma paixão tão completamente consumidora?
Harlan fez pouco mais do que formular as perguntas na mente, e então o assunto todo, Finge e tudo, pareceu-lhe subitamente insignificante.
Ele colocou no bolso a sua arma e atirou-se porta afora, em direção à coluna de caldeira mais próxima.
Fora o Conselho, então, ou Twissell, no final das contas. Ele não temia nenhum deles, nem todos juntos.
Com cada dia passado do último e incrível mês, ele havia se tornado mais convencido de sua própria indispensabilidade. O Conselho, mesmo o próprio Conselho Geral, não teria escolha, senão chegar a um acordo quando se tratasse de trocar uma garota pela existência de todos da Eternidade.
Foi com vaga surpresa que o Técnico Andrew Harlan, ao irromper no século 575, encontrou-se no período da noite. A passagem das fisio-horas havia-se dado sem ser notada, durante suas correrias desenfreadas ao longo das colunas de caldeira. Fitou profundamente os corredores escuros, a evidência ocasional da força dizimada da noite em ação.
Mas na força contínua de sua raiva, Harlan não parou muito tempo para observar inutilmente. Voltou-se em direção aos aposentos pessoais. Encontraria o quarto de Twissell na Galeria dos Computadores como havia encontrado o de Finge, e, da mesma forma, tinha pouco medo de ser notado ou detido.
O chicote neurônico estava ainda firme contra seu cotovelo quando ele parou diante da porta de Twissell (a placa com o nome assegurava-lhe o fato em letras claras e em baixo-relevo).
Harlan ativou impetuosamente a campainha da porta no nível zumbidor. Provocou o contato com a palma úmida e deixou o som tornar-se contínuo. Ele o podia ouvir vagamente.
Um passo soou atrás dele e ele o ignorou, na certeza de que o homem, fosse quem fosse, ignorá-lo-ia. (Oh, remendo vermelho-encarnado de Técnico!)
Mas o som de passos cessou e uma voz disse: — Técnico Harlan?
Harlan voltou-se. Era um Computador Júnior, relativamente novo no Setor. Harlan enfureceu-se intimamente. Este não era o século 482. Aqui ele não era simplesmente um Técnico, era o Técnico de Twissell, e os jovens Computadores, na ansiedade de se agraciarem com o grande Twissell, ofereceriam ao seu Técnico uma civilidade mínima.
— Deseja ver o Computador Sênior Twissell? — disse o homem.
Harlan impacientou-se e respondeu: — Sim, senhor.
(Imbecil! Para que achava ele que alguém ficaria tocando a campainha da porta de um homem? Para apanhar um caldeira?)
— Temo que não possa — disse o Computador.
— Isso é suficientemente importante para acordá-lo — disse Harlan.
— Pode ser — disse o outro — mas ele está fora. Não está no século 575.
— Exatamente onde está ele, então? — perguntou Harlan impacientemente.
O olhar do Computador tornou-se arrogante. — Eu não saberia.
— Mas tenho um encontro importante logo pela manhã — disse Harlan.
— Você tem — respondeu o Computador, e Harlan estava muito embaraçado para explicar seu próprio divertimento diante do pensamento.
O Computador continuou, já sorrindo agora: — Você está um pouco adiantado, não está?
— Mas preciso vê-lo.
— Estou certo de que ele estará aqui pela manhã — o sorriso se alargou.
— Mas…
O Computador passou por Harlan, evitando cuidadosamente qualquer contato, mesmo de roupas.
Os pulsos de Harlan cerraram-se e descerraram-se. Fitou desamparadamente o Computador e então, simplesmente porque nada mais havia a fazer, caminhou lentamente, e sem tomar completo conhecimento dos arredores, de volta ao seu próprio quarto, Harlan dormiu espasmodicamente. Disse consigo mesmo que precisava dormir. Tentou relaxar através de grande esforço e, naturalmente, fracassou. Seu período de sono foi uma sucessão de pensamento fútil.
Primeiro de tudo, havia Noys.
Não ousariam fazer mal a ela, pensou ele febrilmente. Não poderiam mandá-la de volta ao Tempo sem antes calcular o efeito na Realidade, e isso levaria dias, talvez semanas. Como alternativa, poderiam fazer a ela o que Finge ameaçara fazer a ele: colocá-la no caminho de um acidente insondável.
Ele não levou isso em consideração séria. Não havia necessidade de uma ação drástica tal como essa. Não arriscariam, por fazê-lo, o descontentamento de Harlan. (Na quietude de um dormitório escuro e naquela fase de semi-sonolência, onde as coisas muitas vezes ficavam estranhamente desproporcionais em pensamento, Harlan nada encontrou de grotesco em sua confiante opinião de que o Conselho Geral não se arriscaria a causar o desagrado de um Técnico.)
Naturalmente, havia ocupações para as quais uma mulher em cativeiro poderia ser aproveitada. Uma linda mulher de uma Realidade hedonística…
Resolutamente, Harlan expulsou o pensamento tantas vezes quanto ele retornou. Isso era ao mesmo tempo mais provável e mais inimaginável que a morte, e ele não desejava nenhum deles.
Ele pensou em Twissell.
O velho estava fora do século 575. Onde estaria ele durante horas em que deveria estar dormindo? Um velho precisa de seu sono. Harlan tinha certeza da resposta.
Havia conferências do Conselho em andamento. A respeito de Harlan. A respeito de Noys. A respeito do que fazer com um Técnico indispensável que não se ousava tocar.
Os lábios de Harlan repuxaram-se para trás. Se Finge relatasse o assalto de Harlan daquela noite, isso não afetaria de forma alguma as suas considerações. Seus crimes pouco poderiam ser piorados por isso. Sua indispensabilidade certamente não seria diminuída.
E Harlan não estava, de maneira alguma, certo de que Finge o denunciaria. Admitir ter sido forçado a encolher-se de medo diante de um Técnico colocaria um Computador-Assistente numa posição ridícula, e Finge poderia preferir não fazê-lo.
Harlan pensou nos Técnicos como um grupo, o que havia feito raramente nos últimos tempos. Sua própria posição, de certa forma anormal, como homem de Twissell e como meio Educador, conservara-o demasiadamente distante de outros Técnicos. Mas os Técnicos precisavam de solidariedade, de qualquer forma. Qual seria a razão disso?
Tinha ele de passar pelos séculos 575 e 482 raramente vendo ou falando com outro Técnico? Tinham eles de evitar até mesmo um outro Técnico? Tinham eles de agir como se aceitassem o status para dentro do qual a superstição dos outros os forçava?
Em sua mente, ele já havia forçado a capitulação do Conselho no que dizia respeito a Noys e agora estava fazendo mais exigências. Os Técnicos teriam de ser considerados uma organização própria, com encontros regulares — mais amizade — melhor tratamento por parte dos outros.
Seu pensamento final em si mesmo era como um heróico revolucionário social, com Noys a seu lado, quando finalmente afundou num sono sem sonhos.
A campainha da porta acordou-o. Sussurrou-lhe com rouca impaciência. Coligiu seus pensamentos a ponto de ser capaz de olhar o pequeno relógio do lado de sua cama e suspirou por dentro.
Pai Tempo! Depois de tudo aquilo, havia dormido demais.
Ele conseguiu alcançar da cama o botão certo e o retângulo de visão da porta ficou transparente. Ele não reconheceu o rosto, mas este aparentava autoridade, fosse quem fosse.
Abriu a porta e o homem, usando o distintivo alaranjado da Administração, entrou.
— Técnico Andrew Harlan?
Читать дальше