Ele mesmo havia-se tornado bem decadente, agora, para não ser completamente repelido pela obra que entrava no desígnio dos estojos de filme. A inscrição dos títulos misturava-se com a filigrana intricada, até que se tornou atraente, mas quase ilegível. Era um triunfo da estética sobre a utilidade.
Harlan tirou alguns livros das prateleiras, ao acaso, e ficou surpreso. O título de um deles era História Social e Econômica de Nossos Tempos.
Por qualquer razão, este era um lado de Noys ao qual ele havia prestado pouca atenção. Certamente, ela não era estúpida e, contudo, nunca lhe ocorrera que ela poderia estar interessada em coisas sérias. Ele teve o impulso de ver um pouco da História Social e Econômica, mas reprimiu-o. Ele a encontraria na biblioteca do Setor do século 482, se alguma vez a desejasse. Finge tinha, sem dúvida, saqueado as bibliotecas daquela Realidade para os registros da Eternidade, meses atrás.
Ele pôs aquele filme para um lado, examinou o resto rapidamente, selecionou a ficção e um pouco do que parecia literatura leve de não-ficção. Esses e dois visores de bolso, ele acondicionou cuidadosamente numa mochila.
Foi nesse ponto que, uma vez mais, ele ouviu um som na casa. Não havia engano, desta vez. Não foi um ruído curto de origem indeterminada. Foi uma risada, a risada de um homem. Ele não estava sozinho na casa.
Não estava consciente de que havia deixado cair a mochila. Por um vertiginoso segundo, pôde pensar somente que estava encurralado!
Subitamente, isso tinha parecido inevitável. Era a mais pura ironia dramática. Ele havia entrado no Tempo pela última vez, puxado o nariz de Finge pela última vez, trazido o cântaro à fonte pela última vez. Tinha de ser então que ele fosse apanhado.
Fora Finge quem rira?
Quem mais o seguiria, ficaria na espera, permaneceria na sala ao lado e cairia na risada?
Bem, então, estava tudo perdido? E porque naquele momento aflitivo ele estava certo de que tudo estava perdido, não lhe ocorreu fugir novamente ou tentar passar para a Eternidade uma vez mais. Ele enfrentaria Finge.
Ele o mataria, se necessário.
Harlan caminhou para a porta por detrás da qual a risada havia ressoado; caminhou para ela com o passo leve e firme de um assassino premeditado. Desligou o sinal da porta automática e abriu-a com a mão. Cinco centímetros. Dez. Ela se moveu sem ruído.
O homem da sala ao lado estava de costas, A figura parecia muito alta para ser Finge, e este fato penetrou na mente agitada de Harlan e impediu-o de avançar mais.
Então, como se a paralisia que parecia manter ambos os homens em rigidez estivesse cedendo lentamente, o outro se voltou, centímetro por centímetro.
Harlen não presenciou a conclusão daquele movimento. O perfil do outro ainda não estava à vista quando Harlan, retendo uma súbita rajada de terror com um último fragmento de força moral, atirou-se para trás pela porta. Seu mecanismo, e não Harlan, fechou-a silenciosamente.
Harlan retirou-se às cegas. Somente conseguia respirar lutando violentamente com a atmosfera, forçando o ar a entrar e empurrando-o para fora, enquanto seu coração batia loucamente, como se num esforço para escapar de seu corpo.
Finge, Twissell, todo o Conselho junto, não poderia tê-lo desconcertado tanto. Não fora o temor de nada físico que o tinha amolecido. Mais propriamente, foi a aversão quase instintiva pela natureza do incidente que lhe havia acontecido.
Ele ajuntou a pilha de livros-filme numa massa informe e conseguiu, após duas tentativas infrutíferas, restabelecer a porta para a Eternidade. Ele a passou com as pernas operando mecanicamente. De alguma forma, forçou caminho para o século 575, e então para os seus aposentos pessoais. Sua posição de Técnico, novamente avaliada, novamente apreciada, salvou-o uma vez mais. Os poucos Eternos que ele encontrou, voltaram-se automaticamente para um lado e olharam firmemente sobre sua cabeça enquanto o faziam.
Isso foi favorável, pois faltava-lhe habilidade para tirar do rosto a careta de caveira que sentia que estava fazendo, ou qualquer força para devolver-lhe o sangue.
Mas eles não olharam, e ele agradeceu, por isso, o Tempo, a Eternidade e qualquer coisa obscura que compusesse o Destino.
Ele não havia verdadeiramente reconhecido o outro homem da casa de Noys pela aparência, embora conhecesse sua identidade com terrível certeza.
Na primeira vez que ouvira um ruído na casa, ele, Harlan, estivera rindo, e o som que interrompeu sua risada foi o de algo pesado caindo, na sala ao lado. Na segunda vez, alguém rira na sala ao lado e ele, Harlan, derrubara uma mochila de livros-filmes. Na primeira vez, Harlan tinha-se voltado e vislumbrando uma porta fechando-se.
Na segunda vez, ele, Harlan, fechou uma porta enquanto um estranho se voltava.
Ele havia se encontrado consigo mesmo!
No mesmo Tempo e quase no mesmo lugar, ele e seu análogo por diversos fisiodias, quase haviam estado face a face. Havia ajustado erradamente os controles, regulando-os para um instante no Tempo que já tinha usado, e ele, Harlan, tinha visto Harlan.
Ele tinha iniciado seu trabalho com uma sombra de horror sobre si durante dias depois. Chamou a si próprio de covarde, mas isso não ajudou.
Na verdade, desde aquele momento as coisas tomaram uma direção desfavorável. Ele conseguiu entender as coisas.
O momento-chave era o instante em que havia ajustado os controles da porta para a sua entrada no século 482 pela última vez, e, de alguma forma, tinha-os ajustado erradamente. Desde então, as coisas correram mal, mal.
A Mudança de Realidade no século 482 deu-se durante aquele período de desespero e acentuou-o. Nas duas semanas anteriores, ele havia encontrado três Mudanças de Realidade propostas que continham falhas menores, e agora ele escolheu entre elas, embora nada pudesse fazer para mover-se à ação.
Ele escolheu a Mudança de Realidade 2456-2781, V-5, por uma série de razões. Das três, esta era a mais alta na escala do Tempo, a mais distante. O erro era de minuto, mas significante em termos de vida humana. Precisava, então, apenas de uma pequena viagem até o século 2456 para descobrir a natureza da análoga de Noys na nova Realidade, por uso de uma pequena pressão de chantagem.
Mas o desânimo de sua recente experiência o traiu. Não mais lhe parecia uma coisa simples, essa leve utilização de exposição ameaçada. E uma vez que descobrisse a análoga de Noys, e daí? Colocar Noys em seu lugar como arrumadeira, costureira, operária, ou o que fosse. Certamente. Mas o que, então, seria feito com sua análoga? com qualquer marido que a análoga pudesse ter? Família? Filhos?
Não havia pensado em nada disso, antes. Tinha evitado o pensamento. “Válido até dia…”
Mas agora ele não conseguia pensar em nada mais.
Então, escondeu-se em seu quarto, odiando-se, enquanto Twissell o chamava, com a voz cansada perguntando e um pouco confuso.
— Harlan, você está se sentindo mal? Cooper disse-me que você pulou diversos períodos de debate.
Harlan tentou aliviar a preocupação do rosto. — Não, Computador Twissell. Estou um pouco cansado.
— Bem, isso é desculpável, de qualquer forma, rapaz. Então, o sorriso em seu rosto tornou-se tão apertado quanto se tornaria para desaparecer inteiramente. — Ouviu dizer que o 482 foi Mudado?
— Sim — respondeu Harlan brevemente.
— Finge chamou-me — disse Twissell — e pediu-me que lhe dissesse que a Mudança obteve pleno êxito.
Harlan encolheu os ombros, e então notou o olhar de Twissell, na Comunitela, firme sobre si. Ficou embaraçado e disse: — Sim, Computador?
— Nada — disse Twissell, e talvez fosse o manto da idade passando sobre seus ombros, mas sua voz era inexplicavelmente triste. — Pensei que você estava prestes a dizer algo.
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