Esta oportunidade demorou um pouco a apresentar-se, pois nossa pequena comunidade era regida por uma organização tão rígida e perfeita que poucas ocasiões se davam para o exercício da iniciativa individual. Aconteceu todavia que uma manhã houve uma festa religiosa que os fez reunirem-se e absorveu toda a sua atenção. A oportunidade era boa demais para que a perdêssemos e tendo por isso assegurado aos dois porteiros encarregados de manobrar as grandes bombas da câmara de entrada que tudo estava em ordem, encontrávamo-nos dali a pouco sobre o leito do oceano, a caminho da velha cidade. Caminha-se com dificuldade através do meio denso que é a água salgada, e mesmo uma curta jornada é cansativa, mas no fim de uma hora já nos achávamos em frente do vasto edifício negro que excitara nossa curiosidade. Sem nenhum guia amigo para nos deter, nem pressentimento de perigo, subimos a escadaria de mármore e passamos por entre as ombreiras esculpidas daquele palácio do mal.
Estava muito melhor conservado que os outros edifícios da velha cidade — tão conservado mesmo que seu arcabouço de pedra estava ainda perfeito e apenas o mobiliário e ornamentos é que haviam há muito desaparecido. A Natureza, porém, trouxera outros adornos em substituição, e dos mais horríveis. Era uma habitação escura e sombria, mas mesmo naquela semi-obscuridade entreviam-se as formas repulsivas de pólipos monstruosos e peixes extravagantes e grotescos, como visões de um pesadelo. Lembro-me em especial de uma enorme espécie de lesma do mar de cor púrpura, que se arrastava em grande número por toda parte e de grandes e negros peixes chatos que jaziam como almofadas sobre o chão, com longos tentáculos ondulantes de extremidades rubras movendo-se acima deles na água. Precisávamos avançar com cuidado, pois todo o edifício estava povoado com estes entes horrendos, que poderiam muito bem mostrar-se tão peçonhentos como pareciam.
Havia corredores ricamente ornamentados, com pequenos quartos ao lado e o centro do edifício era ocupado por um salão magnífico, que nos seus dias de grandeza deveria ter sido um dos mais admiráveis que a mão do homem já construiu. Aquela frouxa claridade não podíamos ver o teto nem as paredes em conjunto. Mas passeando por eles os túneis de luz de nossas lâmpadas, pudemos apreciar suas dimensões gigantescas e as maravilhosas decorações das paredes. Estas decorações consistiam em estátuas e ornamentos esculpidos com a perfeição mais acabada, mas horríveis e revoltantes em suas representações. Tudo o que o espírito humano mais depravado poderia conceber de crueldade sádica e luxúria bestial, estava representado naquelas paredes. Através das sombras entrevíamos ao nosso redor, para todos os lados, imagens monstruosas e repulsivas. Se jamais o demônio teve um templo erigido em sua honra, seria aquele. A figura do próprio demônio lá se achava representada. Numa extremidade do salão, sob um palio de um metal descorado que bem poderia ter sido ouro e colocada sobre um alto trono de mármore vermelho, achava-se sentada uma divindade temerosa, a mais perfeita personificação do mal, feroz, escarnecedora e implacável, modelada nas mesmas linhas que a de Baal que víramos na colônia dos atlantes, mas infinitamente mais pavorosa e repulsiva. Havia como que um fascínio na energia portentosa daquele semblante terrível. Achávamo-nos à sua frente com a luz de nossas lâmpadas projetadas sobre ela e a contemplá-la absortos, quando a mais espantosa e incrível das coisas veio quebrar o fio de nossas reflexões. De trás de nós veio o som de uma risada humana, estrepitosa e sardônica.
Como já expliquei, nossas cabeças se achavam encerradas em campanas de vidro que não só impediam a entrada do som, como também a transmissão da voz de uma pessoa que a usasse. E entretanto aquele riso escarnecedor chegava claramente aos ouvidos de todos nós. Voltamo-nos todos instantaneamente e ficamos paralisados de espanto ante o espetáculo que se nos deparou.
Recostado contra um dos pilares do vasto salão encontrava-se um homem, com os braços cruzados sobre o peito e os olhos malévolos fixados ameaçadoramente sobre nós. Eu disse que era um homem, mas era diferente de todos os homens que já vira, e o fato de poder respirar e falar em condições em que nenhum homem poderia fazê-lo e de poder transmitir sua voz quando nenhum homem o conseguiria, mostrava-nos que ele tinha em si algo que o tornava muito diferente de nós. Exteriormente era uma figura majestosa, tendo no mínimo sete pés de altura, de linhas atléticas, o que se via melhor por usar ele uma vestimenta que lhe moldava perfeitamente o corpo e que parecia feita de couro preto e luzidio. Seu rosto era o de uma estátua de bronze, uma estátua esculpida por mão de mestre a fim de representar toda a energia e ao mesmo tempo todo o mal que se poderiam imprimir numa fisionomia humana. Seu rosto não exprimia orgulho nem sensualismo, pois tais caracteres indicam fraquezas e não se divisava naquele o menor traço disso. Muito pelo contrário, exprimia uma energia sobre-humana com seus traços firmes, seu nariz de águia, suas sobrancelhas escuras e cerdosas e seus flamejantes olhos negros, que cintilavam e luziam como animados de um fogo interior. Eram estes olhos implacáveis e malignos e sua boca bela mas cruel com seus lábios finos e retos, que lhe davam aquela expressão sinistra no rosto. Sentia-se ao olhar para ele que apesar de sua aparência majestosa era impregnado de maldade até a medula dos ossos. Seu olhar era uma ameaça, seu sorriso um escárnio, sua risada um sarcasmo.
— Muito bem, senhores — disse ele em excelente inglês, numa voz que soava tão claramente como se nos achássemos na terra — já lhes sucedeu uma notável aventura em seu passado e bem lhes poderia acontecer uma outra ainda mais digna de nota no futuro, se bem que eu me possa dar ao agradável trabalho de cortar tudo pela raiz. Receio que esta nossa conversação tenha de possuir um caráter unilateral, mas como sou perfeitamente capaz de ler os seus pensamentos e sei de tudo a respeito de suas pessoas, não precisam temer nenhum mal-entendido. Têm ainda muitas, muitíssimas coisas a aprender.
Olhamos uns para os outros cheios do maior espanto. E o que era mais desagradável era estarmos impedidos de trocar idéias sobre as emoções que tudo isto despertava em nós. Ouvimos novamente sua risada áspera.
— Sim, é realmente bem desagradável. Mas poderão conversar quando voltarem, pois quero que voltem para levar uma mensagem minha. Se não fosse essa mensagem, creio bem que esta visita à minha casa seria o fim de todos. Mas antes de mais nada tenho qualquer coisa a dizer-lhes. Dirigir-me-ei à sua pessoa, Dr. Maracot, como sendo o mais velho e presumivelmente o mais sensato do grupo, se bem que não deva ser considerado muito sensato quem se atreve a fazer uma excursão como esta. Todos me ouvem perfeitamente, não é verdade? Muito bem, um simples movimento de cabeça é quanto me basta.
Em primeiro lugar, bem sabem quem sou. Sei que só me descobriram recentemente. Ninguém pode falar a meu respeito nem pensar em mim sem que eu o saiba imediatamente. Ninguém pode vir à minha antiga casa, meu sacrário mais íntimo, sem que eu me sinta no mesmo instante chamado. É por isso que aquela pobre gente a evita e queria que também a evitassem. Teriam realmente agido muito melhor se seguissem os seus conselhos. Os senhores me trouxeram aqui, e quando me chamam não me afasto assim tão prontamente.
Seu espírito, com o pequeno grão de ciência terrena que possui, atormenta-se inutilmente com os problemas que minha pessoa apresenta. Como posso viver aqui sem oxigênio? Eu não vivo aqui. Vivo no grande mundo dos homens sob a luz do sol. Só venho aqui quando sou chamado, como os senhores me chamaram. Sou uma criatura que apenas respira éter. Aqui existe tanto éter como no cume de uma montanha. Mesmo algumas pessoas da sua espécie, aliás, podem viver sem o ar. O cataléptico pode passar meses sem respirar. O mesmo sucede comigo, mas como vê, permaneço vivo e capaz de atividade.
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