— Um gastrônomo de gostos bem delicados! disse o professor depois de nosso regresso. Existe na Nova Zelândia uma ave de rapina que mata o cordeiro apenas para retirar um pedaço particular de gordura que há acima dos rins. Este animal mata então o homem por causa dos olhos. Quer nos céus quer nas águas a natureza apenas conhece uma lei — a da crueldade fria.
Tivemos numerosos exemplos dessa terrível lei nas profundezas do oceano. Lembro-me por exemplo de que várias vezes observamos um curioso sulco no lodo batibiano, como se um barril cheio tivesse sido rolado sobre ele. Apontamo-lo para os nossos companheiros e quando pudemos interrogá-los tentamos fazer com que nos contassem alguma coisa sobre esse animal. Como seu nome, nossos amigos repetiram várias vezes um daqueles encadeamentos ásperos de sílabas que tão freqüentemente se encontram na linguagem dos atlantes, e que não podem ser reproduzidos nem por línguas de europeus nem pelo nosso alfabeto. Krixchok é talvez uma aproximação dessa palavra. Quanto ao seu aspecto, utilizamo-nos para sabê-lo do refletor do pensamento, como,sempre fazíamos em tais conjunturas e por cujo intermédio nossos amigos nos podiam dar uma clara idéia do que estava em seus espíritos. Por este meio mostraram-nos eles a imagem de um estranho ser marinho que o professor apenas pôde classificar como uma gigantesca lesma do mar. Parecia ser um animal de grande tamanho, em forma de salsicha, com olhos situados na extremidade de pedúnculos e possuindo um basto revestimento de pêlos ou cerdas. Enquanto nos mostravam esta imagem, nossos amigos exprimiam-nos por gestos o horror e repulsa que experimentavam.
Mas tudo isto, como poderia prever quem conhecesse bem Maracot, só serviu para ainda mais inflamar sua curiosidade científica, tornando-o ainda mais ansioso por determinar de um modo exato a espécie deste monstro desconhecido. Por isso, não fiquei surpreendido quando em nossa primeira excursão ele parou no ponto em que se via o rasto do mesmo sobre o lodo e voltou-se deliberadamente para a enrediça de plantas marinhas e rochas basálticas donde parecia ter vindo. No momento em que deixamos a planície, porém, perdemos de vista o rasto, mas as rochas formavam naquele ponto um abrigo natural que deveria provavelmente conduzir à toca do monstro. Estávamos todos os três armados com o varão metálico que os atlantes geralmente carregam consigo, mas eles me pareciam armas bem frágeis para se enfrentarem perigos desconhecidos. O professor, porém, avançou na frente e o único recurso que tínhamos era acompanhá-lo.
Aquela garganta de rochas estendia-se para cima, tendo as paredes formadas de enormes blocos de formação vulcânica e o chão coberto de uma profusão de longas lamelárias vermelhas e negras, que são características das extremas profundidades oceânicas. Um milheiro de belas ascídias e equinodermas de cores vivas e formas caprichosas espreitava dentre esta vegetação povoada de estranhos crustáceos e baixas formas da vida animal. Avançávamos lentamente, pois não é fácil caminhar nas profundezas marinhas, ainda mais tendo-se que vencer uma subida escarpada. Subitamente, porém, avistamos o animal que procurávamos e a visão não era das mais animadoras.
Estava com o corpo saído a meio de sua toca, que era uma escavação num penedo basáltico. Viam-se cerca de cinco pés de um corpo peludo e notamos o mover de seus olhos grandes, como pires, amarelos e brilhantes como ágatas, girando lentamente sobre seus longos pedículos ao pressentir nossa aproximação. Devagar, então, começou a sair de seu abrigo, agitando seu corpo ao caminhar como uma lagarta. Em dado momento levantou a cabeça a uns quatro pés do solo como para ter uma visão melhor de nós e observei então que tinha presa de cada lado do pescoço uma formação semelhante à sola de um sapato de tênis, ambas da mesma cor e tamanho, e de aspecto sulcado. Não conseguia conjeturar o que significaria isso, mas logo iríamos ter uma lição prática sobre sua utilidade.
O professor enristara seu varão em posição ofensiva e pela expressão resoluta de seu rosto vi logo que a esperança de obter um espécime raro varrera todo o temor de seu espírito. Scanlan e eu, porém, não estávamos assim tão confiantes, mas não podíamos abandonar o velho cientista, por isso conservamo-nos firmemente ao seu lado. O monstro, após aquele longo olhar, começou lenta e desajeitadamente a descer a encosta, arrastando-se entre as rochas e levantando de tempos a tempos seus olhos pediculados para ver o que fazíamos. Vendo-o adiantar-se tão lentamente, sentíamo-nos em segurança, pois a qualquer momento poderíamos fugir deixando-o para trás. E mal sabíamos no entanto que nos achávamos a dois passos da morte!
Foi certamente um aviso da Providência. O monstro continuava em seu avanço lerdo e sorrateiro e deveria achar-se a umas cinqüenta j ar das de nós quando um grande peixe saiu do matagal das algas que ficava ao lado da garganta e avançou lentamente por ela. Achava-se, porém, a meio caminho entre o monstro e nós quando deu subitamente um salto convulsivo, voltando-se de ventre para cima, e caiu morto no chão. No mesmo instante todos nós sentimos um estremeção estranho e desagradável percorrer-nos o corpo, ao mesmo tempo que nossos joelhos cediam ao nosso peso. O velho Maracot era tão prudente quanto audacioso e compreendera num momento a situação, desistindo da caçada. Estávamos em frente de um animal que lançava descargas elétricas para matar sua presa, e nossos varões metálicos eram tão inúteis contra ele como contra uma metralhadora. Se não fosse a feliz coincidência de aquele peixe revelar sua tática, teríamos esperado até que ele se achasse a uma distância da qual poderia despejar sobre nós toda a carga de sua bateria, que seguramente nos mataria. Raspamo-nos o mais rapidamente que pudemos, resolvidos para o futuro a deixar a gigantesca lesma em paz.
Eram estes alguns dos mais terríveis perigos do pélago. Outro, ainda, era o pequeno e terrível Hydrops ferox, como o batizou o professor. Era um peixe vermelho, pouco maior que um arenque, e possuía uma grande boca e uma formidável fileira de dentes. Era inofensivo nas circunstâncias ordinárias, mas o derramamento de sangue, mesmo de quantidades mínimas, atraía-o num instante e não havia então salvação possível para a vítima, que era cercada por legiões de atacantes. Vimos certa vez um horrível espetáculo nos poços de retirar carvão, onde um escravo teve a infelicidade de cortar a mão. Num instante, vindos de todos os lados, milhares de peixes caíam sobre ele. Inutilmente este se atirou ao chão, lutando desesperadamente; inutilmente seus companheiros horrorizados os golpearam com suas pás e picaretas. A parte inferior de seu corpo, abaixo de sua campana, dissolveu-se à nossa vista sob uma nuvem vibrante de peixes. Num momento víamos um homem. Um instante depois já só distinguíamos uma massa sangrenta com brancos ossos salientes. Dali a um minuto só se viam os ossos abaixo da cintura: era um meio esqueleto deitado no fundo do mar. Fora um espetáculo tão horrível que ficamos todos profundamente abalados. Scanlan caiu mesmo com um desmaio, dando-nos grande trabalho para o transportarmos para o refúgio.
Mas os estranhos espetáculos que presenciávamos nem sempre eram horríveis. Lembro-me de um, por exemplo, que nunca se apagará de nosso espírito. Foi numa daquelas excursões que gostávamos de fazer, algumas vezes com um guia atlante e outras sozinhos, depois que nossos hóspedes compreenderam que não necessitávamos de constantes cuidados e vigilância. Passávamos certa vez por um trecho da planície que nos era muito familiar quando verificamos, cheios de surpresa, que uma grande faixa de areia amarela, de cerca de meia jeira de superfície, fora depositada ou descoberta, posteriormente à nossa última visita. Contemplávamos aquele espetáculo com alguma surpresa, perguntando-nos que corrente submarina ou que movimento sísmico havia causado o seu aparecimento, quando vimos cheios de espanto toda aquela faixa se elevar, e passar nadando, com lentas ondulações, bem acima de nossas cabeças. Era tão grande aquele palio movediço que levou tempo relativamente considerável — um minuto ou dois — a passar acima de nós. Era um gigantesco peixe chato, não muito diferente, pelo que o professor pôde observar, de um de nossos pequenos rodovalhos, alcançando estas extraordinárias dimensões devido talvez à abundante nutrição que encontrava nos depósitos batibianos. Vimos seu vulto enorme, branco e dourado, desaparecer tremeluzindo e ondulando na escuridão das camadas mais elevadas das águas e nunca mais o avistamos.
Читать дальше