A tela prateada embaciou-se e dali a um instante aparecia outra cena. Era uma enseada cercada de rochas que eu sentia pertencer àquela mesma península que já vira. Ao fundo via-se um bote de estranho formato, de extremos elevados e pontudos. Era noite, mas a lua rasgava uma esteira de prata nas águas. As estrelas familiares, as mesmas para os atlantes que para nós, luziam no céu. Lenta e cautamente o.bote se aproximava. Conduziam-no dois remadores e à proa ia um homem envolto num manto negro. Já quase na praia ele levantou a cabeça perscrutando ansiosamente os arredores. Vi seu rosto pálido e grave à luz clara do luar. Não foi necessária a nervosa pressão dos dedos de Mona sobre minha mão nem a exclamação de Manda para explicar-me aquele estranho estremeção que me percorreu o corpo ao vê-lo. Aquele homem era eu próprio.
Sim, eu, Cirus Headlei, atualmente de Nova York e Oxford; eu, o mais acabado produto da cultura moderna, havia outrora vivido no seio desta antiga e poderosa civilização. Compreendia agora porque numerosos dos símbolos e hieróglifos que vira ao meu redor me haviam dado uma vaga impressão de familiaridade. Numerosas vezes me sentira como um homem que se esforça por avivar reminiscências confusas, sentindo que está às portas de uma grande descoberta, que, embora suspeite estar próxima, sempre lhe escapa. Agora também compreendia aquele profundo abalo que sentira quando meus olhos haviam encontrado os de Mona. Viera das profundezas do meu subconsciente, onde ainda dormiam as recordações de doze mil anos.
O bote acabava de tocar a praia e das moitas acima surgira um vulto alvo. Meus braços se estenderam para recebê-la. Após um rápido abraço levara-a para o bote. Mas repentinamente houve um alarma. Com gestos frenéticos eu ordenava aos remadores que afastassem a embarcação. Mas era tarde. Homens se precipitaram de todas as moitas em volta. Mãos vigorosas empolgaram o barco. Em vão tentava repeli-los. Uma acha luziu no ar e abateu-se sobre minha cabeça. Caí de bruços, morto, sobre ela, banhando seu vestido branco com o meu sangue. Vi-a gritando de desespero, de olhar esgazeado e rosto convulso e seu pai arrancando-a pelos longos cabelos negros de debaixo do meu corpo. E tudo se tornou confuso.
Novamente se animou a tela prateada. Era o interior da casa de refúgio que fora construída pelo previdente atlante como um abrigo para o dia da condenação — a mesma em que nos encontrávamos agora. Vi seus moradores reunidos cheios de terror no momento da catástrofe. Avistei aí minha Mona novamente e também seu pai, que havia aprendido caminhos melhores e mais sábios de modo a ser agora incluído entre aqueles que deveriam ser salvos. Vimos o grande salão adernando para um e outro lado como um navio numa tempestade e os refugiados, cheios de terror, agarrando-se aos pilares ou caindo no chão. Em seguida vimos todo o edifício afundar, descendo através das águas. Novamente tudo desapareceu e Manda voltou-se sorrindo para mostrar que estava terminada a exibição.
Sim, todos nós, Manda, Mona e eu, já havíamos vivido antes e talvez viveremos ainda uma longa cadeia de vidas. Eu havia morrido no mundo que ficava acima das águas e por isso minhas reencarnações se haviam realizado aí. Manda e Mona haviam morrido sob as águas e assim fora aí que se desenrolara seu destino cósmico. Havíamos levantado por alguns momentos um ângulo do grande véu negro da Natureza e tido um vislumbre passageiro da verdade entre os mistérios que nos cercam. Cada vida é apenas um capítulo numa história que Deus arquitetou. Não podereis julgar de sua sabedoria ou de sua justiça senão quando olhardes para trás nalgum dia supremo, alcantilado nalgum pináculo de sabedoria, e virdes finalmente de um modo claro as resultantes da ação complexa das causas e efeitos através do Tempo.
Talvez tenha sido esta minha recente e deliciosa amizade que nos tenha salvo a todos, quando pouco mais tarde surgiu entre nós e a comunidade com que habitávamos a única questão séria que tivemos. Poderíamos ter-nos saído mal se um assunto de muito maior monta não tivesse vindo absorver a atenção de todos e elevar-nos enormemente em seu conceito. Foi mais ou menos assim:
Uma manhã — se tal termo se pode aplicar quando só distinguíamos as diferentes partes do dia pelas ocupações em que as empregávamos — o professor e eu achávamo-nos sentados em nosso grande quarto comum. Ele transformara um recanto do mesmo em laboratório e achava-se absorvido na dissecação de um gastrostomus que havia pescado com sua rede no dia anterior. Sobre sua mesa achava-se espalhado grande número de anfípodes e copépodes, juntamente com espécimes dos gêneros Valella, Ianthina e Physalia e uma centena de outros bichos, cujo cheiro estava longe de ser tão atraente quanto seu aspecto. Achava-me sentado perto dele, a estudar uma gramática atlante, pois nossos amigos possuíam livros em abundância curiosamente escritos da direita para a esquerda sobre um material que supus a princípio fosse pergaminho mas que vi mais tarde ser fabricado de bexigas natatórias de peixes, comprimidas e tornadas inalteráveis. Tinha resolvido apoderar-me da chave que nos proporcionaria todos os conhecimentos neles contidos e por isso estava dedicando grande parte do meu tempo ao estudo do alfabeto e elementos de sua linguagem.
Subitamente, porém, nossas tranqüilas ocupações foram rudemente interrompidas por uma extravagante procissão que irrompeu pelo nosso quarto. Primeiro apareceu Bill Scanlan muito vermelho e agitado, a brandir um dos braços, enquanto com o outro — vimos cheios de espanto — segurava uma criança rechonchuda e chorosa. Atrás dele vinha Berbrix, o mecânico atlante que ajudara Scanlan a construir o receptor de rádio. Era um homem robusto e jovial nas circunstâncias normais, mas agora seu rosto grande e gordo se achava transtornado pela aflição. Seguindo-os vinha uma mulher cujos cabelos louros e olhos azuis mostravam que não era atlante, mas pertencia à raça subordinada que supúnhamos descendesse dos antigos gregos.
— Olhe, patrão, disse o agitado Scanlan, meu amigo Berbrix é uma boa pessoa e ele com esta mulher com quem casou estão passando um mau bocado. Parece que a raça dela aqui é como a dos negros no Sul dos Estados Unidos e ele precisou falar muito para convencê-la a casar-se com ele; mas com isso acho que não temos nada que ver.
— É lógico que não, repliquei. Que bicho te mordeu, Scanlan?
— Foi o seguinte, patrão. Desse casamento nasceu uma criança, mas parece que essa gente não gosta de um produto dessa espécie, e os sacerdotes querem por isso sacrificá-la àquela imagem lá debaixo. Aquele chefe espichela já a ia levando quando Berbrix a arrancou das suas mãos e eu o mandei ao chão com um soco no ouvido. Agora todo o bando está atrás de nós e…
Scanlan não prosseguiu em sua narração, pois repentinamente ouvimos alarido e ruído de pés no corredor, nossa porta foi escancarada e vários dos servidores do templo, vestidos de amarelo, precipitaram-se para o interior do quarto. Atrás deles, feroz e austero, vinha o portentoso sumo-sacerdote de nariz adunco. Fez um sinal com a mão e seus servos precipitaram-se para agarrar a criança. Mas pararam ao ver Scanlan atirá-la entre os espécimes de animais marinhos da mesa que ficava atrás dele e pegar num bastão com que enfrentou os atacantes. Eles haviam desembainhado suas facas, por isso eu também corri com um bastão em auxílio de Scanlan, enquanto Berbrix fazia o mesmo. Nosso aspecto era tão ameaçador que os servos do templo recuaram e houve um momento de tréguas.
— Sr. Headlei, exclamou Scanlan o senhor que fala um pouco da língua deles queira dizer-lhes que não arranjarão nada aqui. Faça o favor de lhes dizer que hoje não se entregam crianças. Diga-lhes ainda que se não saírem já, haverá um tempo quente como nunca viram. Muito bem! Era isso o que você estava procurando! Agora deve estar satisfeito!
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