Vimos a consciência voltar aos poucos àqueles maravilhosos olhos e subitamente ela se pôs de pé num salto, com a vivacidade de uma corça selvagem, e correu para a amurada do navio chamando: «Cirus! Cirus!»
Já havíamos acalmado a ansiedade dos que esperavam embaixo por meio de um radiograma. Logo em seguida, em rápida sucessão, vimo-los chegar um de cada vez. Elevavam-se trinta ou quarenta pés no ar e caíam logo na água, donde rapidamente os retirávamos. Todos os três chegaram desacordados à superfície e saía sangue pelo nariz e ouvidos de Scanlan, mas no fim de uma hora já estavam novamente aptos a por-se em pé. O primeiro ato de cada um foi, ao que me parece, bem característico. Scanlan foi arrastado por um grupo jovial até o bar, donde vêm agora exclamações alegres, muito em detrimento deste trabalho. O Dr. Maracot pegou o maço de papéis, tirou um deles, coberto apenas, ao que me parecia, por símbolos algébricos, e desapareceu pela escada abaixo, ao passo que Cirus Headlei correu para o lado de sua estranha companheira, parecendo ter tenções de nunca mais a deixar. O caso está neste pé e confiamos em que nossa fraca estação possa levar o nosso radiograma até a estação de Cabo Verde. Detalhes mais pormenorizados desta espantosa aventura virão mais tarde, como convém, de seus próprios protagonistas.»
São numerosas as pessoas que têm escrito tanto a mim, Cirus Headlei, aluno da Escola Rhodia de Oxford, como ao Professor Maracot e mesmo a Bill Scanlan desde nossa notável estadia no fundo do Atlântico, onde nos foi dado, num local situado a 200 milhas a sudoeste das Canárias, fazer uma descida de que não só resultou a modificação total de nossas idéias sobre a vida e pressão nas grandes profundidades, como ainda revelou a sobrevivência de uma antiga civilização sob condições incrivelmente difíceis. Nestas cartas constantemente nos pedem para darmos maiores detalhes sobre nossa aventura. Como é lógico, minha primeira narrativa era muito superficial, embora desse conta da maioria dos fatos. Houve alguns sucessos, porém, que não foram narrados e principalmente o pavoroso episódio do Senhor do Torvo Semblante. Este envolvia certos fatos e conclusões de tão extraordinária natureza que todos nós julgamos melhor naquela ocasião deixá-lo inteiramente de lado. Agora, contudo, que a ciência aceitou nossas conclusões e — acrescentarei — que a sociedade aceitou minha noiva, ficou estabelecida a nossa veracidade e talvez nos possamos aventurar a uma narrativa que antes provocaria a incredulidade. Antes, porém, de encetar a narração deste estranho episódio, tratarei de alguns sucessos que com ele se relacionam, reminiscências daqueles meses cheios de imprevisto que passamos na terra submersa dos atlantes, os quais, armados de suas campanas de vidrina, conseguiam caminhar pelo leito do oceano com a mesma facilidade com que aqueles londrinos que agora vejo de minhas janelas do Hyde Park Hotel estão a passear entre os canteiros de flores.
A princípio quando fomos recebidos por aquele povo após nossa queda da superfície, estávamos mais na posição de prisioneiros que de hóspedes. Desejo agora narrar como, graças ao Dr. Maracot, deixamos lá embaixo tal renome que a nossa lembrança passará aos seus anais como a de alguma visita celeste. Nada souberam de nossa partida, que teriam impedido se pudessem, e assim já deve haver entre eles uma lenda sobre nosso regresso a alguma esfera celestial, levando conosco a flor mais bela e adorável da sua gente.
Procurarei agora expor em sua devida ordem algumas das estranhas coisas que observamos naquele mundo maravilhoso, e também algumas das aventuras que nos sucederam até depararmos com a maior de todas elas — uma que deixará para sempre sua impressão sobre todos nós — a volta do Senhor do Torvo Semblante. Sob certos pontos de vista, desejaria que nos tivéssemos demorado mais tempo no Pélago de Maracot, pois lá ainda existiam para nós muitos mistérios. Além disso, já estávamos aprendendo rapidamente a língua que falavam, de modo que logo teríamos muito maior facilidade para obter informações. - A experiência ensinara a este povo a distinguir o terrível do inofensivo. Um dia lembro-me de que houve um súbito alarma. Acompanhando o exemplo de nossos hóspedes, todos nós vestimos nossas campanas de oxigênio e lançamo-nos a correr pelo leito do oceano, se bem que a razão de tudo isto nos fosse um mistério. Não havia porém engano possível quanto à expressão de horror e agitação que havia nos rostos dos que nos cercavam. Quando saímos para a planície encontramos um grande número de mineiros gregos que se dirigiam a toda a pressa para a porta da nossa colônia. Haviam caminhado com tal afobamento e estavam tão cansados que muitos caíam no lodo completamente esgotados, e era mais que evidente que constituíamos uma expedição de socorro, com o objetivo de recolher estes e apressar os retardatários. Não vimos nenhuma arma em poder de nossos companheiros nem sinais que denunciassem propósitos de resistência contra o perigo que se avizinhava. Logo que o último mineiro foi empurrado através da porta nós voltamos o olhar para o caminho por que haviam vindo. Tudo o que podíamos lobrigar eram duas nuvens esverdeadas, lembrando fogos-fátuos, luminosas no centro, apresentando radiações para as bordas, que pareciam antes derivar que mover-se em nossa direção. Ao vê-las assim claramente, se bem que estivessem ainda a meia milha de distância, nossos companheiros foram tomados de pânico e puseram-se a bater na porta, ansiosos por entrar o mais depressa possível. Era realmente atemorizador ver estes dois entes maléficos aproximando-se, mas as bombas trabalhavam rapidamente e dali a pouco tempo nos achávamos novamente em segurança. Acima da porta havia um grande bloco de cristal transparente, de dez pés de comprimento por dois de largura, com luzes colocadas de modo tal que lançavam um forte clarão para o exterior. Subindo em escadas conservadas ali especialmente para esse fim, vários dentre nós, inclusive eu mesmo, ficamos à espreita. Vi aqueles dois estranhos e bruxuleantes círculos de luz pararem em frente da porta. Vendo isto, os atlantes de um e de outro lado de mim estremeceram de pavor. Subitamente um daqueles entes sombrios elevou-se com sua trêmula luminosidade através da água e dirigiu-se para a nossa janela de cristal. Imediatamente meus companheiros puxaram-me para fugir ao seu campo de visibilidade, mas parece que devido à minha negligência parte de meus cabelos não ficou a salvo da influência maléfica — qualquer que fosse ela — emitida por estes estranhos seres. Possuo até hoje uma mecha deles completamente branca desde esse dia.
Só muito tempo depois é que os atlantes ousaram abrir a porta do refúgio, e quando por fim foi enviado um explorador, este partiu entre apertos de mão e tapas amistosos nas costas, como uma pessoa que pratica uma meritória façanha. A notícia que trouxe é de que não havia mais perigo, e logo a alegria voltou à comunidade e esta estranha visita pareceu ser esquecida. Somente ficamos sabendo, por ouvir a palavra «Praxa» pronunciada em vários tons de terror, que era este o nome daqueles entes. A única pessoa que de fato se alegrou com o incidente foi o Professor Maracot, ao qual nos custou impedir que saísse à sua procura.
«Uma nova espécie de vida, parte orgânica, parte gasosa e visivelmente inteligente», comentou ele. «Um espírito saído do inferno» observou Scanlan menos cientificamente.
Saindo dali a dois dias para uma expedição de estudos, quando caminhávamos entre os ervaçais das plantas marinhas capturando em nossas redes de mão espécimes de pequenos peixes, demos subitamente com o corpo de um dos operários das minas de carvão, que sem dúvida fora surpreendido em sua fuga por aqueles estranhos entes. A campana de vidro fora quebrada — o que exigia enorme força, pois a substância de que é feita é extraordinariamente resistente, como viram quando quiseram tirar meu primeiro documento. Os olhos do mineiro haviam sido arrancados, mas era este o único sinal de violência que se notava em seu corpo.
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