Começava já a choramingar e a lamentar-se; então, sem tirar o braço da cara, articulei lenta e penosamente:
— Não me aborreças agora. Está sossegada, que dinheiro não vai faltar!
Seguiu-se um grande silêncio.
— De nada precisas? — acabou por perguntar, mortificada e zelosa, como uma criada de quarto a quem tivessem repreendido por excesso de familiaridade e quisesse fazer-se perdoar.
— Sim, faz-me um favor… Ajuda-me a despir… estou ainda tão cansada e com tanto sono!
Ela obedeceu. Sentando-se na cama começou por me tirar os sapatos e as meias, que atirou para uma cadeira aos pés da cama. Depois despiu-me o vestido e a combinação e ajudou-me a vestir a camisa de dormir. Eu conservava os olhos fechados.
Depois de estar debaixo da roupa, enrolei-me, puxei o lençol e tapei a cabeça com ele. Ouvi minha mãe dar-me as boas-noites do limiar da porta depois de ter apagado a luz, mas não lhe respondi. Adormeci de novo e dormi toda a noite e até a uma hora avançada do dia.
Nessa manhã devia ir ao meu encontro habitual com Gino; mas ao acordar apercebi-me de que não desejava vê-lo enquanto a minha dor não tivesse passado, enquanto não estivesse em estado de considerar a sua traição com objectividade e desprendimento, como se fosse um facto sucedido, não a mim, mas a qualquer outra pessoa. Desconfiava, e continuei sempre a desconfiar, das coisas que se fazem e se dizem sob um impulso de um sentimento, e em particular (era o meu caso) quando esse sentimento não era de simpatia e de amizade. Com toda a certeza que já não gostava de Gino; mas não queria odiá-lo, porque pensava que juntaria ao prejuízo que ele me causara com a sua traição um sentimento desagradável que me mancharia a alma e seria indigno de mim.
Nessa manhã, de resto, experimentava uma estranha preguiça, quase voluptuosa, e sentia-me menos triste que na noite anterior. Minha mãe saíra muito cedo e eu sabia que não voltaria antes do meio-dia. Deixei-me ficar debaixo da roupa: foi o primeiro prazer ao iniciar esta nova fase da minha vida, que eu queria unicamente agradável. Para mim, que me tinha levantado muito cedo durante toda a minha vida, mandriar na cama deixando o tempo correr era um verdadeiro luxo. Durante muito tempo privara-me dele; mas agora estava bem decidida a fazê-lo sempre que me apetecesse. E pensava que assim seria com todas as coisas às quais a minha pobreza e os meus sonhos de vida regular e familiar me tinham até então obrigado a renunciar. Imaginava que amava o amor, que amava o dinheiro, que amava as coisas que se podem obter com ele; e de ora em diante todas as vezes que se me proporcionasse ocasião não me privaria nem do amor, nem do dinheiro, nem das coisas que com o dinheiro pudesse obter. Não se julgue, porém, que pensava nestas coisas enraivecida, por ressentimento ou por espírito de vingança. Muito pelo contrário, pensava nelas com doçura; acalentava a ideia com alegria. Todas as situações, mesmo as mais desagradáveis, tem o seu lado bom. Perdera, de momento pelo menos, o casamento e as modestas vantagens que prometera a mim própria, mas em compensação readquirira a liberdade. É verdade que as minhas aspirações mais íntimas não tinham mudado; mas a vida fácil agradava-me muito, e a imagem desta perspectiva escondia o que representava de tristeza e de resignação nas minhas novas decisões. Os sermões da minha mãe e de Gisela começavam a produzir os seus frutos. Sempre, mesmo levando uma vida virtuosa, eu sabia que bastava querer para que a minha beleza me proporcionasse tudo o que eu desejasse.
Nessa manhã, pela primeira vez, considerava o meu corpo um meio cómodo de conseguir os objectivos que o trabalho sério nunca me permitiria alcançar.
Estes pensamentos ou, melhor, estes sonhos fizeram passar a manhã num relâmpago e admirei-me de ouvir os sinos da igreja vizinha anunciarem o meio-dia e vi um grande raio de sol que se infiltrava pela janela e pousava na minha cama. Tudo, como a minha preguiçosa manhã, os sinos e o raio de sol, me parecia um luxo inesperado e precioso. Nesse momento as belas senhoras ricas que habitavam nas casas iguais à dos patrões de Gino deviam mandriar assim e sonhar nas suas camas escutando os mesmos sinos e olhando com o mesmo espanto o mesmo raio de sol. Foi com a sensação de já não ser a Adriana necessitada e esfomeada do bairro, mas uma Adriana diferente, que por fim me levantei da cama para tirar a camisa de dormir diante do espelho do guarda-fato. Olhei-me toda nua e compreendi o orgulho da minha mãe quando dizia ao pintor: “Olhe este peito! Estas pernas! Estas ancas!” Pensei em Astárito, que o desejo destes seios, destas pernas e destas ancas fazia mudar de carácter, de maneiras e até de voz, e disse a mim própria que com certeza encontraria outros homens que para gozar o meu corpo me dariam muito dinheiro, até talvez mais do que ele.
Indolentemente, como me impunha a minha nova disposição, vesti-me, tomei um café e saí. Entrei um bar próximo de casa e telefonei para casa dos patrões de Gino. Ele tinha-me dado o número com a recomendação, tipicamente servil, de não o usar senão quando fosse estritamente necessário, porque os patrões não gostavam de ter o telefone impedido pelo pessoal. Primeiro falei a uma mulher que devia ser criada de quarto. A seguir veio Gino. Ele perguntou se eu não estava doente, e não pude deixar de sorrir ao reconhecer nesta solicitude a perfeição, inteiramente falsa, que contribuíra para me induzir em erro.
— Estou bem — disse-lhe. — Nunca me senti tão bem.
— Quando nos veremos?
— Quando quiseres, mas desejava que o nosso encontro fosse como dantes… quero dizer aí na moradia, se os teus patrões vão para fora.
Ele compreendeu logo as minhas intenções e respondeu vivamente:
— Eles só devem partir daqui a dez dias, pelas festas do Natal; não antes.
— Então — disse-lhe num tom indiferente — ver-nos-emos daqui a dez dias.
— Mas como? — perguntou-me, admirado. — Porque não antes?
— Antes tenho que fazer.
— Mas que tens tu? — perguntou-me num tom desconfiado. — Tens alguma coisa contra mim?
— Não — respondi. — Não tenho nada contra ti; se tivesse alguma coisa contra ti, não te diria que nos veríamos na moradia.
Lembrei-me de repente de que ele podia ter ciúmes e aborrecer-me ; por isso acrescentei:
— Não tenhas medo… amo-te como sempre… somente, tenho que ajudar minha mãe a acabar uma encomenda extraordinária, por causa das festas… como não poderei sair de casa senão muito tarde, e tu tarde nunca estás livre, preferi esperar que os teus patrões se vão embora.
— Mas de manhã?
— De manhã dormirei! — respondi. — A propósito, sabes que já não sou modelo?
— Porquê?
— Cansava-me… Estás contente, não estás? Então encontramo-nos daqui a dez dias… Eu telefono-te.
— Está bem!
Ele disse “Está bem!” com um ar pouco convencido, mas eu conhecia-o suficientemente para ter a certeza de que, apesar das suas suspeitas, ele não daria sinal de vida antes dos dez dias que eu combinara. Ou melhor, era precisamente por ter ciúmes que não daria sinal de vida. Não era corajoso, e a ideia de que eu pudesse ter descoberto a sua falsidade enchia-o de susto e punha-o nervoso. Depois de ter reposto o auscultador reparei que falara a Gino com uma voz tranquila, amável e afectuosa; e podia tornar a vê-lo sem o receio de me mergulhar e de mergulhar os nossos encontros numa atmosfera de ódio falso e desagradável.
Nessa mesma tarde fui ter com Gisela ao seu quarto mobilado.
Como fazia habitualmente àquela hora, ela acabava justamente de se levantar e começava a vestir-se, para ir ao seu encontro com Ricardo. Sentei-me na sua cama desfeita, e enquanto ela ia e vinha no quarto em penumbra, cheio de objectos e de roupas em desordem, contei-lhe tranquilamente como tinha ido ter com Astárito e como ele me revelara que Gino era casado e tinha uma filha. Ao ouvir a notícia, Gisela soltou uma exclamação que ignoro se era de alegria ou de surpresa, veio sentar-se na cama na minha frente e pousou-me as suas mãos nos ombros, abrindo os olhos:
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