A minha ameaça de chamar gente nada respondeu, mas pegou no chapéu e dirigiu-se para a porta. Quando chegou perto, baixou a cabeça e pareceu recolher-se um momento, para falar. Levantou os olhos para mim remexendo os lábios, mas toda a coragem pareceu abandoná-lo; olhou-me fixamente e ficou mudo.
Este segundo olhar pareceu-me muito longo. Acabou por esboçar com a cabeça um cumprimento e saiu fechando a porta.
Fui depois, furiosa, à cozinha e perguntei a minha mãe:
— Que disseste a esse homem?
— Eu? Nada! — respondeu ela, assustada. — perguntou-me a que género de trabalho nos entregávamos e disse-me que queria mandar fazer umas camisas.
— Se vais a casa dele, mato-te — gritei-lhe.
Olhou-me com olhar apavorado e respondeu:
— Não é preciso lá ir! Pode muito bem mandar fazer as suas camisas a outra pessoa!
— Não te falou de mim?
— Perguntou-me quando te casavas.
— E tu, que lhe respondeste?
— Que te casavas em Outubro.
— Não te deu dinheiro?
— Não. Porquê? — perguntou fingindo admiração. — Devia dar-mo?
Pelo tom da sua voz adquiri a convicção de que Astárito lhe dera dinheiro. Cai sobre ela e segurei-lhe violentamente o braço.
— Diz a verdade! Ele deu-te dinheiro! — gritei-lhe.
— Não. Não me deu.
Ela conservava a mão no bolso do avental. Apertei-lhe o pulso com uma violência terrível e vi saltar do bolso ao mesmo tempo que a mão uma nota de banco dobrada em duas. Assim que a deixei, ela curvou-se para a apanhar com uma tal avidez, uma tal cobiça, que a minha fúria cessou. Lembrei-me da emoção e da felicidade que me invadira a alma quando recebera as notas de Astárito em Viterbo. Senti que não tinha o direito de condenar minha mãe por ela experimentar os mesmos sentimentos que eu e ceder às mesmas tentações. Naquela altura teria preferido nada ter perguntado, nem ter visto aquela nota.
Limitei-me a observar com voz normal:
— Afinal, sempre to tinha dado!
E sem esperar mais explicações saí da cozinha. Ao jantar, algumas suas alusões fizeram-me compreender que desejava tornar a falar de Astárito e do dinheiro. Mas eu desviei a conversa e ela não insistiu.
No dia seguinte, Gisela veio sem Ricardo à pastelaria onde habitualmente nos encontrávamos. Ainda não se tinha sentado e já me dizia sem mais preâmbulos:
— Hoje tenho de falar-te de uma coisa muito importante.
Uma espécie de pressentimento obrigou-me a olhá-la exangue.
— Se é uma má notícia — supliquei-lhe com voz branda — peço-te que não ma dês.
— Não é boa, nem é má — respondeu vivamente. — É uma notícia… eis tudo. Já te disse que Astárito…
— Não quero ouvir falar mais de Astárito.
— Mas ouve… não sejas criança. Pois, como te disse, o Astárito é um homem importante… um graúdo da polícia e da política.
Senti-me um pouco reconfortada. Nunca me ocupara de política.
Declarei sem esforço:
— Mesmo que esse Astárito fosse ministro, para mim era a mesma coisa!
— Uff! Como tu és… Ouve em vez de me interromperes! — declarou Gisela. — Astárito disse-me que era absolutamente necessário que fosses ter com ele ao ministério… precisa de falar-te… mas não de amor — acrescentou rapidamente. — Precisa de falar-te de uma coisa muito importante… De uma coisa que te diz respeito.
— Que me diz respeito?
— Sim… é para teu bem… pelo menos foi o que ele me disse.
Porque teria eu decidido naquele momento aceitar o convite de Astárito, apesar de todas as minha resoluções contrárias? Nem eu mesma sei. Respondi, mais morta que viva:
— Está bem. Irei.
Gisela ficou um pouco desconcertada com a minha passividade.
Foi então que se apercebeu da minha palidez e do meu ar assustado:
— Que tens? — disse-me. — Porque é da polícia? Mas nada tem contra ti! Nenhuma intenção tem de te prender.
Levantei-me, embora me sentisse vacilante.
— Está bem — repeti. — Irei; qual é o ministério?
— O Ministério do Interior. Mesmo em frente do Supercinema. Mas ouve…
— A que horas?
— Por toda a manhã… Mas ouve…
— Até logo.
Nessa noite dormi muito pouco. Fora a sua paixão, não atingia o que Astárito me podia querer, mas um pressentimento que me parecia infalível dizia-me que nada podia ser de bom. O lugar onde me tinha chamado fez-me supor que o assunto devia ter alguma ligação com a polícia. Por outro lado, eu sabia, como sabem todos os pobres, que logo que a polícia se mete nalguma coisa nunca é por bem. Depois de examinar minuciosamente a minha conduta, acabei por concluir que Astárito queria exercer sobre mim outra chantagem utilizando qualquer informação que obtivera sobre a vida de Gino. Eu não conhecia a vida de Gino; era possível que ele se tivesse comprometido politicamente.
Nunca me ocupara de política, mas não era parva a ponto de ignorar que havia muita gente que não suportava o regime fascista e que homens da profissão de Astárito eram precisamente encarregados de dar caça a esses inimigos do governo. A minha imaginação pintava de cores negras o dilema diante do qual Astárito me iria colocar: ou cedia de novo ou prendia Gino. A minha angústia baseava-se no facto de eu não querer de modo algum ceder a Astárito, mas tão-pouco permitir que metessem Gino na prisão. Quando fazia estas reflexões não experimentava qualquer compaixão por Astárito; odiava-o, simplesmente. Parecia-me um homem desprezível e baixo, indigno de viver, que era preciso punir impiedosamente! Entre outras soluções, a ideia de matar Astárito vinha-me com facilidade ao espírito. Mas, mais do que uma solução, era uma divagação mórbida da insónia; e de facto, como estas ideias loucas que nunca se traduzem em decisões objectivas e firmes, acompanhou-me até ao romper do dia. Via-me a pôr na minha mala a faca bem afiada e pontiaguda com que minha mãe descascava as batatas; procurar Astárito; ouvia-o dizer-me o que eu imaginara e com toda a força do meu braço forte cravava-lhe a minha faca no pescoço, entre a orelha e o seu alto colarinho de goma. Imaginava-me a sair da sala, fingindo a maior calma e correr a refugiar-me em casa de Gisela, ou de qualquer outra pessoa amiga. Mas, mesmo ardendo nestas visões sanguinárias, sabia que nunca seria capaz de fazer uma coisa semelhante; tenho horror ao sangue; tive sempre horror em fazer mal aos outros, e o meu carácter leva-me mais a submeter-me à violência que a cometê-la.
De madrugada dormitei um pouco. O dia nasceu; levantei-me e dirigi-me ao meu encontro habitual com Gino. Logo que nos encontrámos na nossa avenida dos arredores, depois de algumas palavras de conversa, esforcei-me por dar à minha voz uma entoação banal e perguntei:
— É verdade… nunca te interessaste por política?
— Por política? Que queres dizer?
— No sentido de ter feito qualquer coisa contra o governo?
Olhou-me com um ar de entendimento e perguntou por sua vez:
— Mas diz-me lá, achas que eu tenho ar de cobarde?
— Não, mas…
— Responde primeiro. Tenho ar de cobarde?
— Não — respondi-lhe —, nada disso me pareces. Somente…
— Então por que diabo queres tu que me ocupe de política?
— Não sei. É que muitas vezes…
— Não comigo. A esses que te insinuaram isso podes dizer-lhes que Gino Molinari não é um cobarde.
Próximo das onze horas, depois de ter rondado mais de uma hora em volta do Ministério sem me decidir a entrar. apresentei-me ao contínuo e perguntei por Astárito. Primeiro subi uma comprida escada de mármore, depois outra escada mais pequena, mas também comprida, depois, por largos corredores, acompanhou-me a uma antecâmara para onde davam três portas.
Читать дальше