João Deus - Flores do Campo
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Mas uma coisa sabe
O que a cabeça ignora
– O coração… que mora
Em peito onde não cabe.
Ha uma luz mais clara
Que a luz do pensamento:
A d’essa imagem cara…
A d’este sentimento!
IV. … 21 DE SETEMBRO
Ha uma hora ou mais,
Marina! que contemplo
A casa de teus paes
Que é para mim um templo.
Está a porta aberta,
E vejo alumiada
A parte descoberta
Da casa da entrada.
Lá andam a passar
Do quarto onde acabaste
Á casa de jantar
Os vultos, que deixaste.
Os vultos, que os vestidos
Tão negros que pozeram,
De luto, tão compridos,
Não sei que ar lhes deram!
A tua bella irmã,
A tua piedade,
A rosa da manhã,
A flôr da mocidade,
Quem lhe diria a ella,
Tão cheia de alegria,
Que haviamos de vêl-a
Assim já hoje em dia!
É esta vida um mar,
E bem se póde a gente,
Marina! comparar
A rapida corrente,
Que vai de lado a lado
Por esses valles fóra
Sem nunca lhe ser dado
Ter a menor demora.
Pára, quando a engole
Aquelle mar sem fundo;
Nem pára; é como o sol
E como todo o mundo…
Ahi não pára nada,
Tudo viaja e anda,
Que a ordem lhe foi dada,
E dada por quem manda.
Chega a corrente lá,
Engole-a logo a onda:
Depois, que é d’ella já?
A nuvem que responda.
Que a nuvem que nos passa
Pela manhã nos ares,
Era hontem a fumaça
Que andava n’esses mares;
E a nevoa, que tu vês
Nas ondas fluctuantes,
Corria-nos aos pés
Talvez um dia antes.
A agua é que no giro
Em que anda eternamente
Não deu nunca um suspiro
Em prova de que sente.
.....................
N’UM ALBUM
Não me admira a mim que o sol, monarcha
De indisputavel throno, e throno eterno
Em céo e terra e mar;
Que em seu imperio o mundo inteiro abarca
Abaixe á pobre flôr seu dôce e terno,
Mavioso olhar.
Não me admira a mim que a crystallina,
Tão pura, onda do mar, que espelha a face
Do astro creador,
Que essas asperas rochas cava e mina,
Á praia toda languida se abrace
E toda amor!
Mas sendo vós um sêr mais precioso
Do que onda e sol— um anjo de poesia
Inspirada e que inspira;
Que ás minhas mãos, das vossas, tão mimoso,
Delicado penhor descesse um dia
É que me admira.
Quizera nos meus cofres de poeta
Ter as riquezas todas do Oriente,
E com mãos liberaes
Expulsar esta duvida que inquieta
Um grato coração que apenas sente
E… nada mais!
De limpido diamante e fio de oiro,
Quizera-vos tecer collar que á aurora
Vencesse em brilho e côr;
Mas o poeta, o unico thesoiro
Que tem, ah! são as lagrimas que chora
E o seu amor.
Eu vol-o dou. E lá do espaço immenso
Se amada estrella olhar piedoso envia
A quem da terra a adora;
Se o sol aceita á flôr humilde incenso;
Ha no amor tambem muita poesia…
Minha senhora!
Evora.
* * *
Beijo na face
Pede-se e dá-se:
Dá?
Que custa um beijo?
Não tenha pejo:
Vá!
Um beijo é culpa
Que se desculpa:
Dá?
A borboleta
Beija a violeta:
Vá!
Um beijo é graça
Que a mais não passa:
Dá?
Teme que a tente?
É innocente…
Vá!
Guardo segredo,
Não tenha medo…
Vê?
Dê-me um beijinho,
Dê de mansinho,
Dê!
Como elle é dôce!
Como elle trouxe,
Flôr!
Paz a meu seio;
Saciar-me veio,
Amor!
Saciar-me? louco…
Um é tão pouco,
Flôr!
Deixa, concede
Que eu mate a sêde,
Amor!
Talvez te leve
O vento em breve,
Flôr!
A vida foge.
A vida é hoje,
Amor!
Guardo segredo;
Não tenhas medo
Pois!
Um mais na face
E a mais não passe!
Dois…
Oh! dois? piedade!
Coisas tão boas…
Vês?
Quantas pessoas
Tem a Trindade?
Tres!
Tres é a conta
Certinha e justa…
Vês?
E o que te custa?
Não sejas tonta!
Tres!
Tres, sim. Não cuides
Que te desgraças:
Vês?
Tres são as Graças,
Tres as Virtudes,
Tres.
As folhas santas
Que o lirio fecham,
Vês?
E que o não deixam
Manchar, são… quantas?
Tres!..
* * *
Thuribulo suspenso inda fluctuo,
Em quanto a alma em incenso restituo;
Mas, quando como fumo que se esvai,
Minha alma! vás teu rumo… sobe e vai.
Vai d’estas densas trevas, d’esta cruz,
Levar-lhe… quanto levas, pobre luz!
Amor, que em mim não cabe, vai depôr
Em Deus, e Deus bem sabe se era amor;
Se d’outra flôr o calix mais libei
Por esses quantos valles divaguei;
Se um nome em igneo traço li no céo,
Nas ondas e no espaço, mais que o seu…
Deus sabe se eu dos montes vi tambem
Nos vastos horisontes mais alguem;
Nos tristes e risonhos dias meus,
Se alguem vi mais em sonhos, que ella e Deus.
Porém quem é que apanha o aereo véo
Da nuvem da montanha, se é do céo?
Se á terra a nuvem desce, quando vai
Tocar-se-lhe, desfez-se como um ai.
Coimbra.
* * *
Luz d’intima influencia,
Oh fugitiva luz!
Luz cuja eterna ausencia
É minha eterna cruz.
Podessem-te, ainda antes
Do meu extremo adeus,
Meus olhos fluctuantes
Vêr lampejar nos céos.
Se ainda n’esse espaço,
Tão longe onde tu vás,
Visse um reflexo baço
Da pura luz que dás;
Tornaram-se-me estrellas
As lagrimas de dôr;
E lagrimas são ellas…
Sim, lagrimas d’amor!
Vê n’esse espaço immenso
Os astros como estão
Bem como eu estou, suspenso
Por intima attracção.
Porque ha quem os attráia;
É essa eterna paz
Que a mim de praia em praia
A suspirar me traz.
Converte-me este inferno
Em azulado céo,
Ou quebra o laço eterno
Que a tua luz me deu;
Ou antes muda em espuma
De nunca estavel mar
Esta alma que alma alguma
Póde exceder em amar.
Em cinza, em terra, em nada,
Meu sêr converte, ó luz,
Mas sempre, sempre amada,
Deliciosa cruz!
Portimão.
RESPOSTA
Em fumo se vai tudo, amigo! Olhando
Para as nuvens do céo, nuvens d’aquellas,
E parece-me ainda que mais bellas,
Anda a gente fazendo e desmanchando.
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