© Editora Gato-Bravo, 2021
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editor Marcel Lopes
coordenação editorial Paula Cajaty
revisão Margarida Fontes
projecto gráfico Bookxpress
imagem da capa AdobeStock
Título
Flores de inverno
Autor
Filipa Amaral
e-isbn 978-989-9069-022
1a edição: Julho, 2021
gato·bravo
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A quem tocou o meu coração, sabem quem são.
A todos que amam e sabem ouvir a música nas palavras.
Sumário
I I Desde sempre a pergunta por fazer, o alçar do véu, iluminar a alma com verdade, suportando corajosamente a consequência — desde agora — Desde sempre o abraço ao raio de luz, o calor da certeza, a transparência invés da máscara baça, da dissimulação profícua Desde sempre o ímpeto da audácia, recuando perante brejos sujos tantas vezes fingidos de lagos celestiais, onde só o faro que o tempo apura, desvenda o fundo putrefacto — desde agora — Desde sempre a inocência, o fervor da espontaneidade, o voo e sabor de ar respirável longe de vermes e coisas mortas Desde sempre o sorriso crescente, o olhar generoso, os sabores das estações em ciclo harmónico Desde sempre a discreta lágrima rolada na carnação suave, tão oposta aos ásperos desprazimentos e desenganos — desde agora —
II II Parece-me que o mundo cada vez mais venera o gesto e a palavra em gatilho-anzol de interesse, esquece logo o que não convém, num trôpego atropelar de vaidades. E são já tantos os tronos similares em insolência e altivez que enfada de verdade o olhar claro, sequioso de vistas únicas.
III III Que faço aqui? Ainda não descobri. Tanto para ser, sentir, saber. As minhas âncoras são balões. O que me prende e me faz perder É O que também me faz sonhar e entender Que assim sou: Livre, dentro de um labirinto.
IV IV Quando andamos à procura de respostas, lá vem a vida e muda-nos as perguntas. O [in]constante [im]previsto [im]previsível.
V V Pedra dura versus efémera flor A pedra ganha e esmaga sempre mas não sabe que a flor ganhou primeiro. A flor abriu-se ao sol, dançou na brisa, Perfumou e doou anónima cor ao mundo, Enfeitou cabelos, deleitou sorrisos, poetizou amores, trouxe Primaveras.
VI VI O Homem-Carvoeiro, o comboio a vapor: foram cerca de 480 meses, 14.600 dias, 116.800 horas de suor e fagulhas, de ardor constante e fuligem negra, de cansaços e dores silenciadas, de uma vida dedicada a enterrar pás na massa negra incandescente alimentícia para que os vorazes e serpentinos-vagões pudessem assim desfilar terra adentro no seu tchuck - tchuck - tchuck - tchuck -tchuck - tchuck constante. Um Homem de que já ninguém sequer se lembra, de que ninguém ouviu falar, de que não restou nem uma única fotografia para olhar o seu rosto sulcado e cansado, para olharmos a face deste Homem que tanto labutou, que anonimamente sonhou em cinzas.
VII VII Ela olhou-o e disse: — Sempre comovo-me com fogo de artifício. É a sua leveza a riscar e a subir os céus, as cores em movimentos livres, o troar forte e vigoroso, a sua magia que me percorre e faz brilhar o olhar, essa palavra que ganha significado dentro de mim; é o próprio romper da opacidade da noite, a comoção pelo seu vibrar enérgico, tudo isso, realmente, fascina-me. Sempre que sinto fogo de artifício, emociono-me deveras em reverência e silêncio. Infelizmente sei que, tal como muitas pessoas, nem todos estão destinados a brilhar no firmamento. São aqueles fogos que sobem, sobem, mas por algum motivo nunca irão mostrar o seu brilho, nunca irão explodir em magnificência; é pena, pois todos têm algo bom para dar, se pudessem, esses foguetes e os humanos. Vem depois a simples e intensa comunhão e júbilo com o mundo, já apenas e só o entusiasmo do momento que me percorre o íntimo, a alegria espontânea de ainda estar viva. Viva. Compreende isto? Ele sorriu-lhe, concordando com um olhar que só pedia: “Beije-me como se tu e eu fôssemos também feitos de fogo e incandescência”.
VIII VIII O centro perfeito do teu olhar As pontas dos teus dedos que tocam, acariciam e sabem percorrer sem pressa, os afagos de um homem e uma mulher que dançam em fogo que cintila. Tudo se ilumina porque sei que te quero amar, mesmo sendo tu e eu de carne, sangue e ossos, mesmo sabendo que na limitação deste verídico, seremos brilho pertinaz. O teu universo é a proeza que quero arriscar, nesta oferta cada vez mais vasta de universos sedutores-vazios, preenchidos de excessivos néones e garridas gambiaras. Tu não. Tu tens luz própria.
IX IX Livre: Que posso acrescentar ao que sou, ao que faço, se o meu trajeto é não querer ter trajetos, ou pelo menos dos que surgem por inevitabilidade existencial, ir-me sempre libertando?
X X Uma pequena ode ao silêncio, esse silêncio que a muitos assusta por tanto lhes trazer os seus particulares barulhos ensurdecedores. Silêncio em mim é degustado em suaves tragos de borbulhante contentamento cor de primavera.
XI XI Tudo encaixa neste amanhecer o silêncio reina, o perfeito momento de um despertar em serenidade, a aconchegante sensação de fazer sentido na singeleza desse desabotoar do céu em sol amornado. São as coisas mais simples que nos dão, sem nada querer em troca, sincera substância. E eis o cheiro da terra e orvalho, fértil para lançar a semente, o beijo-sol que acaricia a sua terra, desejoso de a despertar.
XII XII Tem dias. Fecho os olhos, giro o globo, feito à medida da minha humana dimensão, e aponto. Abro os olhos, vejo onde calhou. E depois sonho.
XIII XIII A ideia de que somos concebidos como uma imensa tela me consome. Imagino-nos, cada um de nós, com seu fio condutor e um grande tecelão, qual maestro, que devagar nos tece. Acho que deus é isto. Esta incomensurável maquinaria invisível que nos atravessa e nos urde. Uma fazedura gigantesca, a grande obra de arte intemporal, que o nosso fugaz olhar terreno não consegue nunca adivinhar nem vislumbrar. Acredito que os nossos mortos, consoante vingança ou compaixão, nos criam novelos, nós-de-vida ou desatam-nos. Temos sempre que ser generosos, gratos e prudentes com os nossos mortos. Eles sabem coisas que nós ainda não.
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