32 Minhas reivindicações? Liberdade. Uso dela; não abuso. Sei embridá-la nas minhas verdades filosóficas e religiosas; porque verdades filosóficas, religiosas, não são convencionais como a Arte, são verdades. Tanto não abuso! Não pretendo obrigar ninguém a seguir-me. Costumo andar sozinho.
33 Virgílio, Homero, não usaram rima. Virgílio. Homero, têm assonâncias admiráveis.
34 A língua brasileira é das mais ricas e sonoras. E possui o admirabilíssimo “ão".
35 Marinetti foi grande quando redescobriu o poder sugestivo, associativo, simbólico, universal, musical da palavra em liberdade. Aliás: velha como Adão. Marmetti errou: fez dela sistema. É apenas auxiliar poderosíssimo. Uso palavras em liberdade. Sinto que o meu copo é grande demais para mim, e inda bebo no copo dos outros.
36 Sei construir teorias engenhosas. Quer ver? A poética está muito mais atrasada que a música. Esta abandonou, talvez mesmo antes do século 8, o regime da melodia quando muito oitavada, para enriquecer-se com os infinitos recursos da harmonia. A poética, com rara exceção até meados do século 19 francês, foi essencialmente melódica. Chamo de verso melódico o mesmo que melodia musical: arabesco horizontal de vozes (sons) consecutivas, contendo pensamento inteligível. Ora, si em vez de unicamente usar versos melódicos horizontais: "Mnezarete, a divina, a pálida Phrynea comparece ante a austera e rígida assemblea Do Areópago supremo...” fizermos que se sigam palavras sem ligação imediata entre si: estas palavras, pelo fato mesmo de se não seguirem intelectual, gramaticalmente, se sobrepõem umas às outras, para a nossa sensação, formando, não mais melodias, mas harmonias. Explico milhor: Harmonia: combinação de sons simultâneos. Exemplo: "Arroubos... Lutas... Seta... Cantigas... Povoar!..." Estas palavras não se ligam. Não formam enumeração. Cada uma é frase, período elíptico, reduzido ao mínimo telegráfico. Si pronuncio "Arroubos”, como não faz parte de frase (melodia), a palavra chama a atenção para seu insulamento e fica vibrando, à espera duma frase que lhe faça adquirir significado e QUE NÃO VEM. "Lutas" não dá conclusão alguma a "Arroubos"; e, nas mesmas condições, não fazendo esquecer a primeira palavra, fica vibrando com ela. As outras vozes fazem o mesmo. Assim: em vez de melodia (frase gramatical) temos acorde arpejado, harmonia, — o verso harmônico. Mas, si em vez de usar só palavras soltas, uso frases soltas: mesma sensação de superposição, não já de palavras (notas) mas de frases (melodias). Portanto: polifonia poética. Assim, em Paulicéia Desvairada usam-se o verso melódico: "São Paulo é um palco de bailados russos"; o verso harmônico: "A cainçalha... A Bolsa... As jogatinas...” e a polifonia poética (um e às vezes dois e mesmo mais versos consecutivos): "A engrenagem trepida... A bruna neva... Que tal? Não se esqueça porém que outro virá destruir tudo iso que construi. Para ajuntar à teoria:
37 Os gênios poéticos do passado conseguiram dar maior interesse ao verso melódico, não só criando-o mais belo, como fazendo-o mais variado, mais comotivo, mais imprevisto. Alguns mesmo conseguiram formar harmonias, por vezes ricas. Harmonias porém inconscientes, esporádicas. Provo inconsciência: Victor Hugo, muita vez harmônico, exclamou depois de ouvir o quarteto do Rigoletto: “Façam que possa combinar simultaneamente várias frases e verão de que sou capaz". Encontro anedota em Galli, Estética Musical. Se non é vero...
38 Há certas figuras de retórica em que podemos ver embrião da harmonia orai, como na lição das sinfonias de Pitágoras encontramos germe da harmonia musical. Antítese — genuína dissonância. E si tão apreciada é justo porque poetas como músicos, sempre sentiram o grande encanto da dissonância, de que fala G. Migot.
39 Comentário à frase de Hugo. Harmonia oral não se realiza, como a musical, nos sentidos, porque palavras não se fundem como sons, antes baralham-se tornam-se incompreensíveis. A realização da harmonia poética efetua-se na inteligência. A compreensão das artes do tempo nunca é imediata, mas mediata. Na arte do tempo coordenamos atos de memória consecutivos, que assimilamos num todo final. Este todo, resultante de estados de consciência sucessivos, dá a compreensão final, completa da música, poesia, dança terminada. Victor Hugo errou querendo realizar objetivamente o que se realiza subjetivamente, dentro de nós.
40 Os psicólogos não admitirão a teoria. . E responder lhes com o ''Só-quem-ama” de Bilac. Ou com os versos de Heine de que Bilac tirou o "Só-quem-ama”. Entretanto: si você já teve por acaso na vida um acontecimento forte, imprevisto (já teve, naturalmente) recorde-se do tumulto desordenado das muitas idéias que nesse momento lhe tumultuaram no cérebro. Essas idéias, reduzidas ao mínimo telegráfico da palavra, não se continuavam, porque não faziam parte de frase alguma, não tinham resposta, solução, continuidade. Vibravam, ressoavam, amontovam-se, sobrepunham-se. Sem ligação, sem concordância aparente — embora nascidas do mesmo acontecimento — formavam, pela sucessão rapidíssima, verdadeiras simultaneidades, verdadeiras harmonias acompanhando a melodia enérgica e larga do acontecimento.
41 Bilac, Tarde, é muitas vezes tentativa de harmonia poética. Daí, em parte ao menos, o estilo novo do livro. Descobriu, para a língua brasileira, a harmonia poética, antes dele empregada raramente (Gonçalves Dias, genialmente, na cena de luta, Y — Juca — Pirama). O defeito de Bilac foi não metodizar o invento; tirar dele todas as conseqüências. Explica-se historicamente seu defeito: Tarde é um apogeu. As decadências não vêm depois dos apogeus. O apogeu já é a decadência, porque sendo estagnação não pode conter em si um progresso, uma evolução ascensional. Bilac representa uma fase destrutiva da poesia; porque toda perfeição em arte significa destruição. Imagino o seu susto, leitor, lendo isto. Não tenho tempo para explicar: estude si quiser. O nosso primitivismo representa uma nova fase construtiva. A nós compete esquematizar metodizar as lições do passado.
Volto ao poeta. Ele fez como os criadores do Organum medieval: aceitou harmonias de quartas e de quintas desprezando terceiras, sextas, todos os demais intervalos. O número das suas harmonias é muito restrito. Assim, "... o ar e o chão, a fauna e a flora, a erva e o pássaro, a pedra e o tronco, os ninhos e a hera, a água e o réptil, a folha e o inseto, a flor e a fera" dá impressão duma longa, monótona série de quintas medievais, fastidiosa, excessiva, inútil, incapaz de sugestionar o ouvinte e dar-lhe a sensação do crepúsculo na mata.
42 Lirismo: estado efetivo sublime — vizinho da sublime loucura. Preocupação de métrica e de rima prejudica a naturalidade livre do lirismo objetivado. Por isso poetas sinceros confessam nunca ter escrito seus milhores versos. Rostand por exemplo: e, entre nós, mais ou menos, o sr. Amadeu Amaral. Tenho a felicidade de escrever meus milhores versos. Milhor do que isso não posso fazer.
43 Ribot disse algures que inspiração é telegrama cifrado transmitido pela atividade inconsciente à atividade consciente que o traduz. Essa atividade consciente pode ser repartida entre poeta e leitor. Assim aquele que não escorcha e esmiuça friamente o momento lírico; e bondosamente concede ao leitor a glória de colaborar nos poemas.
44 "A linguagem admite a forma dubitativa que o mármore não admite". Renan.
45 "Entre o artista plástico e o músico está o poeta, que se avizinha do artista plástico com a sua produção consciente, enquanto atinge as possibilidades do músico no fundo obscuro do inconsciente”. De Wagner.
46 Você está reparando de que maneira costumo andar sozinho...
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