onde luziluzam as velas!…
Natal… Mas não há longas espirais
de incenso, a se enroscar pelos altares!…
No colo virgem de Maria,
junto dos anjos tutelares,
rindo, estendendo seus bracinhos nus,
nem se lembraram – quem se lembraria! –
nem se lembraram de repor Jesus!…
– Em Reims, os sinos não badalam mais!
Num silêncio de múmia, brancacenta,
a noite corre… Batem doze badaladas.
Onde estão as canções desabaladas
dos sinos gárrulos?… – Friorenta,
a grande catedral emudeceu:
e para ela a alegria dos natais,
toda a alegria dos natais morreu!…
– Em Reims, os sinos não badalam mais!…
Abriam-se inda no ar alguns obuses,
como flocos de paina;
e, ao barulhar bramante do barulho,
tetos tombavam, e brotavam luzes;
onde fora Lovaina…
– Mas no meio do entulho,
nas avenidas e nas alamedas
tresloucadas, sem rumo,
onde ladrava, sob o fumo,
a cainçalha das labaredas;
mas pelas vastas praças atupidas
de destroços heris de monumentos;
nas ruas de comércio, onde mil vidas
jaziam, envolvidas
na mortalha dos desmoronamentos;
mas nos palácios, nas mansardas,
nos esqueletos das habitações,
nas escolas estraçalhadas,
nos átrios, nos terraços, nas escadas,
no torvelim dos mortos e das fardas,
na boca muda dos canhões,
naquele hediondo incêndio triunfal:
não calculei ao desastroso mal
toda a incomensurável extensão!
Não vi o exício duma grei humana,
o destino infeliz duma raça espartana,
o fim terrível duma geração!
Se houve crime nefando,
não lhe medi a imensidade:
só, dentre as ruínas da universidade,
eu vi os grandes livros fumegando!
Quando a paz vier de novo, nova e franca,
passar nestas estradas e caminhos,
novas aves talvez e novos ninhos
hão-de agitar-se pela manhã branca…
Novos ventos virão da serra,
úmidos, rindo-se, esfuziar no prado;
e novamente, regoando a terra,
ir-se-á, rangindo, o arado…
Pouco tempo depois, pela estrada, os viandantes
verão, cobrindo os campos marginais,
os brocados trementes, ampliondeantes,
as roupagens custosas dos trigais…
Virão novas colheitas,
virão risadas a remir fadigas,
virão manhãs de acordar cedo,
virão as tardes feitas
de conversas à sombra do arvoredo,
virão as noites de bailados e cantigas!…
Toda a população ir-se-á nos vales
colher o trigo novo e lourejante;
e, na pressa afanosa, bem distante
lhe passará da idéia tanta luta,
tantos passados males!
Pelo campo ceifado, à Ave-Maria,
na tarde enxuta
e fria,
enquanto o vento remurmura, meigo e brando,
mulheres de Millet, robustas e curvadas,
irão glanando, irão glanando…
Tudo será colheita e riso. – Então,
depois de tantas fomes e misérias,
de tantas alegrias apagadas,
de tantas raivas deletérias,
os celeiros de novo se encherão.
Mas o trigo abastoso dos celeiros
relembrará o sangue, a vida,
os penosos momentos derradeiros
duma geração toda destruída…
Olhai! hoje o trigal é mais verde e mais forte!
O chão foi adubado a carne e sangue…
Que importa haja caído um exército exangue,
se deu a vida ao trigo tanta morte!
Este é o trigo que é pão e alento!
Vós que matastes com luxúria e sanha,
vinde buscar o prêmio: é o alimento…
Ei-lo: em raudal, em nuvem, em montanha!
Este é o trigo que nutre e revigora!
É para todos! Basta abrir as mãos!
Vinde buscá-lo!… – Vamos ver agora,
quem comerá a carne dos irmãos!
Este livro é teu, Saudade do lar; única fada que, espero, concitará os homens ao mútuo perdão, fazendo das trincheiras e das arenas de batalha a mais trágica das solidões.
Mestre querido.
Nas muitas horas breves que me fizestes ganhar a vosso lado dizíeis da vossa confiança pela arte livre e sincera... Não de mim, mas de vossa experiência recebi a coragem da minha Verdade e o orgulho do meu Ideal. Permiti-me que ora vos oferte este livro que de vós me veio. Prouvera Deus! nunca vos pertube a dúvida feroz de Adriano Sixte... Mas não sei, Mestre, se me perdoareis a distância mediada entre estes poemas e vossas altíssimas lições... Recebei no vosso perdão o esforço do escolhido por vós para único discípulo; daquele que neste momento de martírio muito a medo inda vos chama o seu Guia, o seu Mestre, o seu Senhor.
Mário de Andrade
14 de dezembro de 1921
S. PAULO
Prefácio interessantíssimo
"Dans mon pays de fiel et d'or j'en suis la loi”. E. Verhaeren
1 Leitor: Está fundado o Desvairismo.
2 Este prefácio, apesar de interessante, inútil.
3 Alguns dados. Nem todos. Sem conclusões. Para quem me aceita são inúteis ambos. Os curiosos terão prazer em descobrir minhas conclusões, confrontando obra e dados. Para quem me rejeita trabalho perdido explicar o que, antes de ler, já não aceitou.
4 Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo o que meu inconsciente me grita. Penso depois: não só para corrigir, como para justificar o que escrevi. Daí a razão deste Prefácio Interessantíssimo.
5 Aliás muito difícil nesta prosa saber onde termina a blague, onde principia a seriedade. Nem eu sei.
6 E desculpe-me por estar tão atrasado dos movimentos artísticos atuais. Sou passadista, confesso. Ninguém pode se libertar duma sô vez das teorias-avós que bebeu; e o autor deste livro seria hipócrita si pretendesse representar orientação moderna que ainda não compreende bem.
7 Livro evidentemente impressionista. Ora, segundo modernos, erro grave o Impressionismo. Os arquitetos fogem do gótico como da arte nova, filiando-se, para além dos tempos históricos, nos volumes elementares: cubo, esfera, etc. Os pintores desdenham Delacroix como Whistler, para se apoiarem na calma construtiva de Rafael, de Ingres, do Greco. Na escultura Rodin é ruim, os imaginários africanos são bons. Os músicos desprezam Debussy, genuflexos diante da polifonia catedralesca de Palestrina e João Sebastião Bach. A poesia... “tende a despojar o homem de todos os seus aspectos contingentes e efêmeros, para apanhar nele a humanidade”... Sou passadista, confesso.
8 “Este Alcorão nada mais é que uma embrulhada de sonhos confusos e incoerentes. Não é inspiração provinda de Deus, mas criada pelo autor. Maomé não é profeta, é um homem que faz versos. Que se apresente com algum sinal revelador do seu destino, como os antigos profetas". Talvez digam de mim o que disseram do criador de Alá. Diferença cabal entre nós dois: Maomé apresentava-se como profeta; julguei mais conveniente apresentar-me como louco.
9 Você já leu São João Evangelista? Walt Whitman? Mailarmé? Verhaeren?
10 Perto de dez anos metrifiquei, rimei. Exemplo?
ARTISTA
O meu desejo é ser pintor — Lionardo,
cujo ideal em piedades se acrisola;
fazendo abrir-se ao mundo a ampla corola
do sonho ilustre que em meu peito guardo...
Meu anseio é, trazendo ao fundo pardo
da vida, a cor da veneziana escola,
dar tons de rosa e de ouro, por esmola,
a quanto houver de penedia ou cardo.
Quando encontrar o manancial das tintas
e os pincéis exaltados com que pintas,
Veronese! teus quadros e teus frisos,
irei morar onde as Desgraças moram;
e viverei de colorir sorrisos
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