É as greis humanas, pela primavera,
quando a terra toda é
florida como uma quimera,
conduzir para a luz, para a alegria,
para tudo que é róseo e que é risonho,
para tudo que é poema ou sinfonia,
para o arrebol, para a esperança, para o sonho!…
Ó doce paz, ó meiga paz!…
Vinde divina geratriz do riso;
estendei vosso manto puro e liso
por sobre a terra que se esfaz!
E novamente os povos sossegados,
mais felizes alfim, menos incréus,
envolvereis, ó paz imensa!
– De novo os cantos rolarão nos prados;
e os homens todos rezarão aos céus,
numa ressurreição da esperança e da crença!
O vento reza um cantochão…
Meio-dia. Um crepúsculo indeciso
gira, desde manhã, na paisagem funesta…
De noite tempestuou
chuva de neve e de granizo…
Agora, calma e paz. Somente o vento
continua com seu oou…
Destacando-se na brancura,
os últimos pinheiros da floresta,
ao vendaval pesado e lasso,
como que vão partir em debandada:
parece cada qual, com a cabeça dobrada,
uma interrogação arrojada no espaço.
O vento rosna um fabordão…
Qual um mármore plano de moimento,
silenciou o caminho. É a sepultura,
profana, sem unção,
onde, com a última violeta,
jaz a franca alegria do verão…
Há ventania, mas
há solidão e paz.
Ninguém. Os derradeiros pios
voaram de manhãzinha; mas em breve
sepultaram-se sob a neve,
mudos e frios.
Tudo alvo… apenas a tristeza preta,
e o vento com seus roncos…
Ninguém.
– Alguém!
Olha, junto dos troncos,
um reflexo de baioneta!…
É sempre assim. De manhãzinha, braço dado,
nos jardins claros do hospital,
ele mancando, a ela apoiado,
silenciosos, lado a lado,
dão o passeio matinal.
E, vagarosamente, se entranhando
no perfume vermelho da manhã,
ela vem triste, como que sonhando,
– ela, que é sã –
e ele, – o ferido – traz sorrisos francos,
vem assobiando entre seus lábios brancos
uma valsa alemã…
E no fundo do parque redolente,
onde tudo é perfume e som,
sentam-se e dizem, já maquinalmente:
“Êtes-vous las?” – “Oh! non!”
Então ele, com sua voz quebrada,
vendo o sol que no longe aponta,
entrando sorrateiro sob a touca,
brincar entre os cabelos brunos dela,
pela décima vez conta e reconta
como o prenderam e feriram pela
tardinha, ao proteger a retirada
dos seus soldados.
Ela, dedos febris entrelaçados,
bebe o reconto que lhe sai da boca.
E ele lembrando, sem vanglória, o heroísmo
que praticou, a vê chorar…
Então se arrasta para junto dela,
pergunta-lhe a razão do seu mutismo,
pede-lhe as mãos para beijar…
– “Porquoi pleures tu?” – “Moi!” – “Mais oui!…”
E no seu colo se debruça,
cola-lhe a boca às mãos; e enquanto ele soluça,
agora, ela sorri.
É sempre assim…
Mas ao voltar, vem resplendendo
nela o beijo nas mãos, nele a esperança…
Voltam pelos meandros do jardim,
e ela vem rubra, que ele vem dizendo
quanto acha lindas as manhãs de França…
Partir pelo ar, atravessar girando
o ambiente perfumado do verão.
Sentir o vento novo e brando;
no ímpeto da carreira,
perfumar-se e abrandar-se à viração!…
Partir, com o íntimo esforço, velozmente:
ver na campina a última leira,
rasgada pelo último arado,
aberta a boca mansa, esperar a semente!…
Partir, ouvindo os passarinhos,
que despertara a cotovia,
musicar, lado a lado,
o êxtase florescido dos caminhos!…
Ó! como é bom partir, subindo!…
Sob a palpitação da madrugada fria,
à ovação triunfal do dia infante e lindo
ó! como é bom partir subindo!…
Partir, alimentando um desejo de escol;
partir, subindo pelo espaço para o sol!…
Mas na suprema glória de subir,
sentir
que as forças vão faltar:
e retornar de novo para a terra;
e servir de instrumento numa guerra;
e rebentar,
e assassinar!…
Fora desmantelado,
quando, golfando pela fauce aberta
o atestado dos órfãos e das viúvas,
um grande obus lhe rebentara ao lado…
No modesto recanto do jardim
da aldeia miserável e deserta,
na sua herança má de mudo e eterno,
estático e sem fim,
viu, no outono, morrer o sol das chuvas,
entrajou-se de neve em pleno inverno;
e agora, à sussurrante primavera
mostra no beiço o riso do jasmim…
Converteu-se. Sorriu à natureza;
perdoou a rabugice ao vento sul;
e, no êxtase imortal – Santa Teresa
da primavera – ele olha esperançosamente,
essa visão seráfica e esplendente,
a claridade mágica do azul…
Na culatra soaberta, onde altos estampidos
gerara a bala estrepitosa e fera,
fizeram ninho as andorinhas…
Culatra! – geradora de gemidos,
geradora de implumes avezinhas!…
Cobre-lhe uma roseira o desnudo cinismo.
Tem a benção do luar, nas noites perfumosas.
Vem ungi-lo às manhãs o sol de abril.
E o canhão convertido, odorante e gentil,
na imota unção de seu catolicismo,
ouve o Te Deum das abelhas sobre as rosas…
Ele morre. E tam só! Move-se e chama.
Quer chamar: sai-lhe a voz quase sumida;
e pelo esforço, sobre o chão de grama
jorra mais sangue da ferida…
Vai morrer… Angustiado, a noite inteira,
– noite encantada dum estio morno –
viu o tempo seguir entre as horas caladas;
nem percebeu a Lua cálida e trigueira,
com mil clarões afuzilando em torno;
e o broche colossal das estrelas douradas!
Olha agora. A alvorada
começa de brilhar nos longes glabros.
Perto, galhos de arbustos sonolentos,
onde a luz se dissolve na orvalhada,
são como verdes candelabros,
confortando-lhe os últimos momentos…
Estira os braços… Os odores,
em revoada puríssima e louçã,
sobem, cantantes, multicores,
cheios da força nova da manhã…
Ele pudera ouvir, caindo,
quando o estilhaço lhe rasgara o abdômen,
as joviais ovações dos seus soldados,
e, na fugida, os inimigos dizimados,
e os seus, em fúria, os perseguindo…
– E não restara um homem.
Depois, reviu os seus, a procurá-lo,
– altos lamentos pela noite clara…
Por pouco o não pisara
a pata dum cavalo!
Quis gritar, mas não pôde. E, único gesto
que abriu, foi um desfiar de lágrimas, silente;
e, olhos febris, rosto congesto,
viu seus ulanos
partirem tristes, tristemente…
E os passarinhos riem desumanos…
Sobem aos ares os primeiros hinos,
num triunfal e transbordante surto;
e em cima dele, com seus pios cristalinos,
libra uma cotovia o vôo curto…
Vai expirar. Já, numa ardência louca,
sente a sede da febre que o acabrunha…
Vai expirar… Mas só o estio o testemunha,
e a abelha matinal que lhe zumbe na boca…
E Gretchen? a rosada companheira
de dez meses apenas! e o filhinho
que está para nascer por esses dias?…
– Tantas quenturas de lareira!
tanto aconchego de seu ninho!
tanto amor! tantas alegrias!…
Principiavam ao longe os roncos e os estouros…
Читать дальше