Era hora de almoço, as sirenes da fábrica de armamento e explosivos, assim como a petroquímica de Auschwitz II, já tinham soado para anunciar a pausa do meio-dia e o maldito comboio proveniente da Hungria sem aparecer. Esta era a última leva de prisioneiros para Auschwitz e todos os outros campos associados. Aquele carregamento era uma exceção muito afetada por força das circunstâncias. Era necessária mais mão de obra para o desmantelamento que tinha sido ordenado pelas altas patentes, em virtude da aproximação do exército russo; as instalações fabris não podiam de maneira alguma cair em mãos inimigas, mormente a importante indústria química de Auschwitz III; havia que acelerar a desmontagem das instalações e aqueles ciganos iriam ajudar à concretização desse plano.
Os soldados já tinham tomado posições ao longo do cais e da via férrea, cujo acesso era vedado por cavalos de arame farpado e cercas de rede eletrificada. Também os prisioneiros que ajudariam os recém chegados a descer e a limpar os vagões já eram enquadrados pelos seus kapos, que com as braçadeiras berrantes, castanhas para os polacos e amarelas para os judeus, se tornavam bem notados para os soldados que, de armas aperradas, aguardavam o comboio. Até o tenente, que comandava aquela unidade de receção, passeava, soberbo da sua autoridade, sobre a neve que atapetava o cais de madeira e provava o seu nervosismo com as batidas do pingalim sobre o cano das botas polidas de negro.
Um estridente silvo se fez ouvir no silêncio gelado daquele soturno ambiente de carris, sinistras vedações eriçadas de farpas e homens de rostos tétricos. Lá ao fundo, a quebrar a linha do horizonte, o olho incandescente apontava ao longo da via e tornava visível o círculo negro que, qual visão fantasmagórica, sugestionava o monstro de ferro que se insinuava na brancura do trajeto. Era envolto numa neblina de vapor e cuspia fuligem incandescente pela bocarra sita no topo, também de escuro tom.
A iluminação do cais se acendeu como reforço à visibilidade ofuscada pela neve que recomeçou a cair, leve e suave como pétalas de florinhas brancas em campo de boninas. A locomotiva estacou com um ruído sinistro de aço rangente no entrechocar de ferro contra ferro, no suspender das rodas e das bielas laterais. Resfolegou pelo escoadouro do cimo e se aquietou do esforço de tirar aqueles pesados vagões de gado; soltou ainda um último suspiro que envolveu de vapor a descida dos dois maquinistas. A neblina condensou-se e o oficial encaminhou-se ao encontro dos dois funcionários, que o saudaram de braço levantado num arremedo marcial e recebeu o rolo de papéis que atestava a carga e a proveniência. Relanceou os olhos pelos cabeçalhos escritos e de imediato levantou a cabeça e a ordem partiu seca e nítida, no silêncio da pausa do meio-dia:
— Achtung! Achtung! Preparar para abrir e formar a duas filas os homens depois do quinto vagão a partir da locomotiva! Para as mulheres que estão nos vagões da frente, abram a um terço só para respirar e aguardarão a descarga até os homens serem enquadrados para os serviços sanitários de inspeção.
Um sargento fez sinal aos kapos que enquadravam os piquetes de ajuda à descarga e lhes deu instruções:
— A cada homem um pão e uma wisse wurst e cada bebedouro tem lotação para dez, não permitam que se amontoem!
Os homens, como um só, sem qualquer resquício de vacilação, como se treinados a preceito pela prática, encaminharam-se em direção às portas corrediças dos vagões e ali estacaram, esperando as ordens dos seus kapos de braçadeira castanha. Os judeus que carregavam os baldes e as raspadeiras da limpeza também se posicionaram ao longo do vagão e aguardaram as ordens dos seus chefes de braçal amarelo. Pelos retângulos gradeados daqueles cubículos de desmaiada cor vermelha ouvia-se o bramido desesperado dos presos que, na ânsia de uma lufada de ar fresco, soltavam imprecações e injúrias. Uma voz mais atilada, talvez de alguém que era suspenso pelos braços dos companheiros, soou nítida e blasfema mesmo junto ao postigo:
— Cães judeus, apressem-se, condenados de um deus maldito!
Aquilo era uma terrível provocação ao messiânico sentimento dos filhos de Abraão, que se entreolharam e guardaram para si o pensamento que se fixou em suas mentes e que está escrito como preceito no Talmude: Até que os judeus os tenham por escabelo dos seus pés. Estes impuros goyim seriam os primeiros a sentir o poder dos escolhidos do Senhor dos Exércitos! Aquela blasfémia terrível seria analisada no conselho sionista do campo e quem a tivesse soltado, melhor fosse que já tivesse desaparecido!
As mãos enregeladas de um polaco manusearam o arame que servia de loquete, pois tal acessório já faltava no aprovisionamento de retaguarda, o que não pressagiava nada de animador ao esforço de guerra nazi. O primeiro vagão foi aberto, o último do comboio, e lançou de imediato, na atmosfera gélida, uma onda de nauseabundo odor que se infiltrou com tal intensidade na fileira de soldados em frente que nos seus rostos era visível a carranca de nojo e, para se manterem estáticos e em ordem, as mãos se aferraram mais às armas automáticas que portavam. Os trabalhadores polacos aproximaram-se mais da saída do vagão e, por estarem mais familiarizados com aquela repugnância que era sua companheira nas enxovias que habitam no campo, quase nem pestanejaram quando o cheiro a merda defecada no chão do veículo chegou às suas narinas. Conforme os ciganos eram despejados, com o amparo dos prisioneiros que os ajudavam, mais se espalhava o repugnante odor a suor, merda e mijo retardado. Era uma onda que já emporcalhava o próprio cais onde o oficial, de rosto franzido pelo asco, se refugiara junto dos êmbolos da locomotiva, cujo óleo derramado e viscoso disfarçava o nojento cheiro, e não deixava de sussurrar entre dentes:
— Schweinen!
O serviço médico sanitário lutava naquele momento com um surto grave de tifo e a inspeção, por rigorosa, era mais lenta, uma medida para obstar a maior contaminação. Os fornos crematórios já trabalhavam a 24 horas para eliminar as vítimas do surto daquela pandemia que ameaçava as linhas de produção das indústrias instaladas nos campos de trabalho, o que tornava ridícula a frase inscrita no quadro da entrada de Auschwitz I, Arbeit nacht frei (O trabalho liberta), porque o tifo ameaçava suspender toda a atividade.
Os recém chegados ciganos, indiferentes à porcaria que tinham deixado nos vagões agora livres, agarravam com as duas mãos ainda imundas de sujidade e trampa a salsicha fora de prazo e o pão duro. Devoravam com a raiva da fome que forçava as suas mandíbulas a tragar sem mastigar e a engolir sofregamente o que o estômago já exigia havia 3 dias. Depois, com a boca escancarada a demandar água para empurrar o que a faringe ainda não conseguira deglutir para o esófago, metiam a cabeça nos bebedouros para ocupar mais espaço e emporcalhavam a água que era de todos. A brigada de limpeza já raspava a merda fedorenta e seca dos lastros dos vagões de gado, que agora transportavam seres humanos para trabalho escravo. Era a necessidade como forma de produzir sem custos as armas que iriam dizimar os seus semelhantes, vítimas da limpeza étnica da sua raça de cabelo negro e pele mate, abominável à nobre e ariana descendência dos Ases. Alguns dos judeus mais sionistas, que limpavam a porcaria, expeliam em surdina imprecações chauvinistas sobre os corpos dos ciganos que tinham sucumbido à viagem, lançando anátemas com os lábios crispados de aversão:
— Senhor, que este maldito animal edomita seja apagado da memória do tempo e que o inferno o devore para todo o sempre!
Os corpos dos gitanos, exânimes e rígidos pela ação do frio, eram estendidos ao longo dos carris para posterior corte de cabelo e revista pela brigada de recoletores, antes de entrarem na linha de incineração. Os kapos, tanto de um lado como do outro, gritavam ordens e incentivos depreciativos sobre o seu pessoal para se fazerem ouvir e agradar aos alemães — o fito era o de manter os seus privilégios. Conforme os prisioneiros passavam a primeira porta, logo eram colocados dois a dois em simples filas para a inspeção sanitária e de seguida encarreirados para o banho de água fria, para depois vestirem os fatos listados de castanho, que era a cor atribuída à etnia cigana. Um prisioneiro judeu entregava-lhes um naco de sabão duro e empurrava-os para o outro lado do tapume, onde esguichavam os jatos de água gélida e, logo que passavam no controle de limpeza, lhes era dada para se limparem uma toalha de serapilheira, que lhes serviria também de agasalho e cobertor, esses prometidos e sempre adiados abrigos, que até já eram escassos para o próprio povo alemão.
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