As religiosidades de matrizes africanas, em suas lidas cotidianas, rituais e mistérios, engendram toda a sabedoria que foi transplantada e transportada pelo Atlântico. E neste oceano reside toda a força que em trânsito foi depositada através dos corpos-coisas que foram deixados, formando um grande cemitério negro ancestral.
As águas, para o Povo de Terreiro, o mar, cachoeiras, rios e lagoas, contêm um imenso significado vital, assim como deveria ser para todos os povos. As deusas, orixás, inkisses e voduns são aclamadas e cultuadas com muita intensidade, pois são elas que se assemelham e se representam nas águas. Assim, sabemos que no Atlântico reside um memorial de sabedoria que, materializado por Iyemanjá, a rainha do mar, a mãe de todas as cabeças, que concebe e permanece gerando mais e mais filhos – o Atlântico Negro.
Não podemos tentar mensurar quão complexas foram as saídas de resposta e de sobrevivência possíveis dos africanos e africanas, à medida que reconstroem e atualizam as práticas africanas. Sendo assim, em cada comunidade negra se produziu/produz uma tradição. Muito por conta das diferentes línguas, cultos, rituais e costumes vindos do continente africano. Podemos inclusive afirmar que clima, fauna e flora disponíveis, contribuíram também para a constituição da diversidade de organizações que se apresentam no Brasil e nas Américas, além de considerar os grupos étnicos africanos juntados e os grupos étnicos originários que tiveram que organizar convivências.
A importância dos povos originários para a organização negro-africana no Brasil se mostra fundamental. Aparece muito pela utilização de ervas e animais, que é basicamente experimentada e igualmente conhecida, mostrando que efetivamente a troca de conhecimentos se deu e ainda se dá de forma dinâmica, horizontal, circular e presente. Além do mais, como podemos verificar, as cosmopercepções de mundo africano e ameríndio são similares, fator que pode responder o porquê entre estes povos não aparecem, pelo menos em fatos historicizados, grandes conflitos, até porque o racismo latino-americano…
… é suficientemente sofisticado para manter negros e índios na condição de segmentos subordinados no interior das classes mais exploradas, graças à sua forma ideológica mais eficaz: a ideologia do branqueamento. (González, 2018:326)
Portanto, a relação entre povos africanos e ameríndios traz, inclusive para dentro do pensamento feminista negro brasileiro, a produção de uma categoria analítica construída neste espírito pela intelectual Lélia Gonzalez: a Amefricanidade (González, 2018), que diz:
As implicações políticas e culturais da categoria Amefricanidade são, de fato, democráticas; exatamente porque o próprio termo nos permite ultrapassar as limitações de caráter territorial, linguístico e ideológico, abrindo novas perspectivas para um entendimento mais profundo dessa parte do mundo onde ela se manifesta: A AMÉRICA e como um todo (Sul, Central, Norte e Insular). Para além do seu caráter puramente geográfico, a categoria de Amefricanidade incorpora todo um processo histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas) que é afrocentrada, isto é, referenciada em modelos como: a Jamaica e o akan, seu modelo dominante; o Brasil e seus modelos yorubá, banto e ewe-fon. Em consequência, ela nos encaminha no sentido de construção de toda uma identidade étnica. Desnecessário dizer que a categoria de Amefricanidade está intimamente relacionada àquelas de Pan-africanismo, “Negritude”, “Afrocentricity”8 etc. (González, 2018:329-30)
Lélia Gonzalez colabora para que possamos reivindicar esta identidade negro-africana reconstituída na América ou Américas. Mas também não deixa de enfatizar que é uma reconstrução, e que diretamente isso quer dizer que histórica e culturalmente esta experiência não é igual àquela dos africanos em África, pois neste caso, mesmo sendo colonizados, estes permaneceram em seu próprio território-continente. Assim, podemos pensar que para os ameríndios, mesmo estando em situação de igual subalternidade, esta experiência se dá em seu território. Portanto, o fenômeno que se desencadeia na sobrevivência das culturas africanas (González, 2018) é um evento importante para os/as pesquisadores/as e militantes, pois pode proporcionar trocas intensas entre as/os interessadas/os nas Américas de Norte a Sul, sem o engano evolucionista e eurocêntrico, assim como o engano sobre estas sobrevivências sem considerar a potência criadora dos afrodiaspóricos.
Esta produção sem engano, sem fakes, é construída em cima do paradigma de que há um passado de resistência. Um passado de agência que é seguramente responsável pela nossa existência. Assim, entendemos a frase da pensadora Jurema Werneck, que diz que “nossos passos vêm de longe” (Werneck, 2010), pois esta frase carrega o compromisso da amplitude social e política digna da ancestralidade e das ialodês9 , e a autora faz…
… uma “aproximação dialógica com a tradição afro-brasileira utilizando a figura da Ialodê, como chave de análise de papéis, das funções e ações das mulheres nos processos da cultura popular. (Werneck, 2007: 59)
Considerando assim que nossos passos, passos do povo preto, vêm de África e dela percorrem todas as Américas. Neste caminho, as/os antepassadas/os, tiveram a necessidade de existir, resistir e vingar suas vidas, a partir de convivências forçadas pelo processo escravocrata, que forçosamente foram juntadas as pessoas de etnias e línguas diferentes em espaços diminutos, para ser mais um vetor de opressão (e foi), mas que o que aconteceu realmente foi a possibilidade de fundir e potencializar fragmentos de memórias que foram se reconstruindo estes saberes e que hoje é possível detectar e inclusive estudar no universo acadêmico. E Lélia Gonzalez novamente nos diz:
Por tudo isso, e muito mais, acredito que politicamente é muito mais democrático, culturalmente muito mais realista e logicamente muito mais coerente, identificar-nos a partir da categoria Amefricanidade e nos autodesignarmos amefricanos… Reconhecê-la é, em última instância, reconhecer um gigantesco trabalho de dinâmica cultural que não nos leva para o lado do Atlântico, mas que nos traz de lá e nos transforma no que somos hoje: amefricanos. (González, 2018:333)
Assim, mulheres negras transatlânticas (Nascimento apud Ratts, 2006), amefricanas (González, 2018), afrodiaspóricas (Gilroy, 2007), constroem fortes versões de consciência histórica. Capazes de legar a esta coletividade política, filosófica, histórica e culturalmente um pleno e multicêntrico fluxo de conhecimento, em uma reconstrução de linhas cosmopolíticas.
Considerações finais
Fortalecida com as intelectuais negras, e considero aqui intelectuais não somente as mulheres que escrevem academicamente ou até militantemente (se é possível separar estas categorias), mas também as mulheres cotidianas, as mulheres práticas, as mulheres da vida (vida essa sendo vivida dentro das possibilidades para as mulheres negras), com elas, a cada dia, tenho percebido que se faz urgente uma união estratégica e política, pois filosófica e epistemologicamente temos condições de perceber que existe uma unicidade. Uma verdade contrapondo a mentira racista que diz que não somos unidos. O problema é que a vida de urgências, a comunicação imediata e fugaz e o imperialismo de consumo asfixiam e não deixam os indivíduos perceberem que existem frestas para alianças contra coloniais, que existem exemplos seculares desta forma de resistência e os terreiros e os quilombos também têm o poder de se expandir nesta fresta. Têm a força de contrafluir em prol da humanidade e vida desejada na diáspora.
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