… possa nos ajudar a acabar com a tal marginalização. No espírito do que pode ser chamado de história “heterológica”, gostaria que considerássemos o caráter cultural e as dimensões políticas de uma narrativa emergente sobre a diáspora que possa relacionar, senão combinar e unificar, as experiências modernas das comunidades e interesses negros em várias partes do mundo. (Gilroy, 2017:11)
Paul Gilroy nos apresenta uma proposta de construção de outra narrativa, com uma ideia próxima da lógica da vida e que nos traz a importância, a responsabilidade e a garantia que as mulheres negras, principalmente as que são mais ligadas à ancestralidade, têm, contrapondo os projetos políticos de morte impetrados às populações negras, uma contra-colonialidade.
Katiúscia Ribeiro afirma e nos faz pensar que a força de gerir vida das mulheres (reduzidas somente à maternidade biológica pelo patriarcado) é, para as mulheres negro-africanas, também a mesma força de gestar as organizações sociais, ancestrais, econômicas e políticas do povo a qual estas mulheres pertencem.
Assim, juntamente com outras pensadoras negras (Oyewumi, 2016; Collins, 2019) o poder das mulheres africanas e afrodiaspóricas se materializa primeiramente por se localizar num tipo de saber promovido pela ancestralidade, organizado pela matriz africana e, portanto, organizado pela cosmossensação (Oyewumi, 2016) em lutas sociais e coletivas – pela justiça social (Collins, 2019) e pela democracia. Essas lutas são referências iniciadas pelos indivíduos escravizados e seus descendentes, de forma contracultural à modernidade, à política liberal que constrói “inocentes noções de justiça e democracia” (Gilroy, 2017), onde somente os iguais podem ter o pleno acesso e os diferentes habitam fora deste enredo. Portanto, a luta pela justiça social, pela democracia e liberdade também toma outras dimensões quando é dita pelas populações que se agenciam em causas próprias, incorporando assim dimensões de raça, classe, gênero e território.
A cosmossensação descrita pela socióloga Oyeronke Oyewumi se contrapõe ao paradigma da racionalidade ocidental, em que a razão está na máxima: penso, logo existo, de Descartes. No conhecimento nigeriano descrito pela intelectual, a racionalidade africana é produzida nas relações cosmogônicas e sentimentais, portanto, sinto, logo me conecto com o cosmo e produzo racionalidade compartilhada.
Dentro do esforço do giro decolonial (Quijano, 1997) que mobiliza tornar possível outras narrativas que se contrapõem ao esquema colonial ainda vigente – colonialidade – é que acredito ser possível localizar a fonte de saber das mulheres negras na diáspora, nas Américas e ao sul do Sul.
Então, construir uma narrativa que se assegura em olhar para fenômenos sociais e políticos – as similaridades invariáveis –, sem dar ao dado histórico devida relevância e verificar quais são suas possibilidades de variações, considerando que a humanidade sempre apresenta saídas criativas e inovadoras que fogem ao controle do previsível social, estaria desrespeitando um grande e importante princípio, quando falamos em civilizações antigas, que é a ancestralidade negro-africana. A ancestralidade que fez a travessia nas águas do Oceano Atlântico e nas Américas se hospeda. Um exemplo disso é a louvação à Iemanjá no Brasil e em toda a costa Atlântica – o Atlântico Negro.
A contaminação líquida do mar envolveu tanto mistura quanto movimento. Dirigindo a atenção repetidamente às experiências de cruzamento e a outras histórias translocais, a ideia do Atlântico Negro pode não só aprofundar nossa compreensão sobre o poder comercial e estatal e sua relação com o território e o espaço… (Gilroy, 2017:15)
Como os conhecimentos da ancestralidade operam diante do contexto de ruptura violenta que sofreram as africanas e os africanos com suas retiradas em massa para as Américas é o que atualmente os intelectuais, principalmente os de origem negra, têm descrito, com narrativas e potências de observação e entendimento sobre como foi possível resistir frente aos séculos de exploração e expropriação continental:
… devemos reconsiderar as possibilidades de escrever relatos não centrados na Europa sobre como as culturas dissidentes da modernidade do Atlântico negro têm desenvolvido e modificado este mundo fragmentado, contribuindo amplamente para a saúde do nosso planeta e para suas aspirações democráticas. (Gilroy, 2017:16)
As possibilidades de existências afrodiaspóricas no momento atual se apresentam diversas, dinâmicas e resultantes das arbitrariedades de sobrevivência à escravização e na manutenção de existências nos territórios compartilhados – de forma mais próxima com os povos originários (ameríndios) e de forma desigual com o povo colonialista (branco europeu). Estas possibilidades se apresentam plurais por vários motivos: clima do local, grupos étnicos reunidos, situação a que foram expostos – trabalhos de ganho, agropecuária, domésticos –, e possibilidades de rebeliões e fugas.
Assim, negras e negros nas Américas – diasporizados – levaram consigo suas existências. Pode parecer retórica esta afirmação, mas ela é importante quando estamos demarcando espaço acadêmico de construção de conhecimento, onde ‘negro’ sempre foi tema, objeto de pesquisa e sofreu uma sistemática invisibilização como sujeito de produção intelectual, epistemológica e filosófica.
Estas possibilidades de existência, mesmo que superficialmente se apresentem de maneiras diversas, também apresentam similaridades que nos últimos tempos têm se apresentado às ciências sociais que, debruçadas nos estudos africanos e centradas na agência negra (Asante, 2003), se baseiam na filosofia e epistemologia africana intentando afirmar a confluência (Santos, 2015) ancestral ou ancestralidade negro-africana.
Se, pelo conhecimento científico, pudermos eliminar todas as formas das frustrações (culturais e outras) que vitimam povos, a aproximação sincera do gênero humano para criar uma verdadeira humanidade será promovida. (Diop, 1974:545)
Fortalecida neste espírito científico contra-colonial de Cheikh Anta Diop, este ensaio me motiva em promover a confluência ancestral, tanto verbalizada por Antônio Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo, afirmando que a confluência rege os processos de mobilização dos povos, gerando grandes debates entre a realidade e a aparência.
Lutas por justiça social
As condições de vida, na chegada de homens e mulheres negros africanos, vindos de África no tráfico transatlântico, eram de igualdade: todos eram corpos-coisas que serviriam como força de trabalho ao senhorio – escravos.3 No instante que se escolhia estes corpos-coisas, fazia-se a divisão sexual do trabalho. Ali estabelecia-se que mulheres serviriam para cuidar das mulheres e crianças brancas, cozinhar, lavar e passar as residências das famílias, enquanto as consideradas “mais fortes” eram encaminhadas para afazeres de força na agricultura ou ganho, juntamente com os homens, sejam eles crianças, jovens ou adultos.
Mesmo nesta descrição rápida sobre o que foi o comércio das pessoas escravizadas4, é possível entender que diante desta realidade se dá uma inversão de valores de cada trabalho/função, num contexto arbitrário, e que o indivíduo negro/a forçosamente devia entender e se reconstruir em padrões de valorização de si e do outro. Padrões totalmente diferentes dos que existiam nas sociedades negro-africanas.
Assim, foram se criando várias saídas de sobrevivência, com possibilidades de recriação do mundo africano, através de reminiscências ancestrais (Machado, 2019). Organizando-se inicialmente nos espaços de convivência social (senzalas) e depois nos outros espaços de aglutinação negra. Os terreiros se constituem nesta segunda opção, sendo uma forma dentro destas tantas possibilidades, assim como os quilombos também foram e que atualmente podemos reformular em aquilombamentos como nos permite pensar Beatriz Nascimento, que diz que o “quilombo não foi o reduto de negros fugidos: foi a sociedade alternativa que o negro criou” (Nascimento, 2018: 101).
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