— Faz-me o favor de me dizer em que ponto estão?
— Já acabaram — respondeu o advogado.
— Acabaram!?
Esta palavra foi repetida por tal modo, que o advogado voltou-se para quem a repetira
— O senhor é talvez parente do réu?
— Não, senhor. Não conheço aqui ninguém. Mas houve condenação?
— Sem dúvida. Não podia deixar de ser.
— A trabalhos forçados?
— Por toda a vida.
Madelaine continuou com voz fraca que mal se ouvia:
— Foi provada a identidade?
— Qual identidade? — perguntou o advogado. — Não havia identidade a provar. O caso era simples. A mulher tinha morto seu filho; provado o infanticídio e rejeitando o júri a premeditação, foi condenada por toda a vida.
— É então uma mulher?
— Certamente, chamada Limosin. Mas de que falava o senhor?
— Eu, de nada; mas tendo terminado a audiência, porque é que a sala se conserva iluminada?
— Por causa do outro julgamento, que começou há de haver duas horas.
— Que julgamento é?
— É também um caso simples. Trata-se duma espécie de vagabundo, um reincidente, um forçado que cometeu um roubo. Não sei o nome dele, mas tem verdadeiro aspeto de bandido. Pela minha parte bastava-me ver-lhe a cara para o mandar para as galés.
— Não haverá maneira de entrar na sala?
— Não o julgo fácil, porque está lá muita gente. A audiência agora está interrompida, e como saíram algumas pessoas, pode ser que encontre lugar para quando continuar a sessão.
— Por onde se entra?
— Por aquela porta.
E o advogado afastou-se. Em poucos instantes, Madelaine experimentava quase ao mesmo tempo, e por assim dizer fundidas, todas as comoções possíveis.
As palavras daquele indiferente tinham-lhe atravessado simultaneamente o coração quais agulhas de gelo, ou lâminas candentes. Quando viu que ainda não tinha terminado o julgamento, respirou: mas não teria podido dizer-se se o que sentira era contentamento ou desgosto. Aproximou-se de vários grupos e escutou o que diziam. Como havia muitas causas a julgar, o juiz indicara para aquele mesmo dia, dois processos simples e que deviam decidir-se com brevidade.
Tinham começado pelo infanticídio e passado depois ao forçado, ao reincidente, ao cavalo de retorno6 .
O tal homem tinha roubado uma porção de fruta, mas isso não parecia bem provado; do que havia todas as provas era de ter estado nas galés de Toulon. Era isto que lhe fazia maior carga.
Já tinha terminado o interrogatório do réu e a inquirição das testemunhas, mas faltava ainda a defesa pelo advogado e a requisitória do ministério público; isto tudo não podia terminar antes da meia-noite. O homem seria provavelmente condenado; o delegado do procurador-régio era muito bom nunca lhe escapavam os acusados; era um moço de talento, que até fazia versos.
Junto da porta que comunicava com a sala da audiência estava um oficial de diligências, a quem Madelaine perguntou:
— Esta porta abre-se daqui a pouco, não é verdade?
— Não, senhor, não se torna a abrir.
— Pois não se torna a abrir quando continuar a audiência?
— A audiência já continuou — respondeu o oficial de diligências —, mas a porta não se abre.
— E porquê?
— Porque a sala está cheia.
— Pois não haverá nem um lugar?
— Nem um só. A porta está fechada, portanto não pode entrar mais ninguém. — O oficial de diligências, depois de um momento de silêncio, acrescentou: — Há ainda dois ou três lugares por detrás do senhor juiz, mas ele não deixa ir para ali senão os funcionários públicos.
O oficial de diligências, disse estas palavras e voltou-lhe as costas.
Madelaine retirou-se cabisbaixo, atravessou a antessala e tornou a descer a escada vagarosamente e como hesitando a cada passo. É provável que estivesse em conselho consigo mesmo. O violento combate que nele se travava desde a véspera não terminara ainda, e a cada instante se sentia a braços com uma nova peripécia, Chegando ao patamar da escada, encostou-se ao corrimão e cruzou os braços. De repente desabotoou a sobrecasaca, tirou do bolso a carteira, rasgou-lhe uma folha e escreveu nela rapidamente a lápis, esta linha: « Madelaine, maire de Montreuil-sur-mer » , depois tornou a subir rapidamente a escada, atravessou por entre a multidão, foi direito ao oficial de diligências e entregou-lhe o papel, dizendo ao mesmo tempo com autoridade:
— Leve isto ao senhor juiz.
O oficial de diligências pegou no papel, lançou-lhe os olhos e obedeceu.
O maire de Montreuil-sur-mer, sem que mesmo o suspeitasse, tinha uma certa celebridade. Havia sete anos que a sua reputação de virtude percorria todo o Baixo Bolonnais, acabando por ultrapassar os limites de um pequeno território e espalhando-se pelas províncias vizinhas. Além do serviço que prestara à capital do distrito, restaurando ali a indústria dos vidrilhos pretos, não havia uma só das cento e quarenta comunas de Montreuil-sur-mer que lhe não devesse algum benefício. Tinha até achado o modo de ajudar e fecundar as indústrias dos outros distritos. Fora assim que ele, numa ocasião crítica, sustentara com o seu crédito e fundos a fábrica de filós de Bolonha, a fiação mecânica de linho de Prevent e a manufatura hidráulica de tecidos de Boubers-sur-Canche. Por toda a parte se pronunciava com veneração o nome do senhor Madelaine. Arras e Douai invejavam o maire da pequena mas feliz cidade de Montreuil-sur-mer.
O conselheiro do supremo tribunal de Douai que presidia à audiência conhecia, como toda a gente, aquele nome tão profundo e universalmente respeitado. Quando o oficial de diligências, abrindo discretamente a porta que comunicava a casa do conselheiro com a sala da audiência, se inclinou por detrás da cadeira do presidente e lhe entregou o papel que lhe tinham dado, acrescentando: «Este senhor deseja assistir à audiência», o presidente fez um gesto de deferência e solicitude, pegou numa pena, escreveu algumas palavras no mesmo papel, tornou a dá-lo ao oficial de diligências, dizendo-lhe ao mesmo tempo:
— Mande entrar.
O desgraçado de quem contámos a história ficara junto da porta da sala no mesmo lugar em que o oficial de diligências o deixara. Atrás da sua meditação ouviu que alguém lhe dizia:
— O senhor maire dá-me a honra de me seguir?
Era o mesmo oficial de diligências que pouco antes lhe voltara as costas e que agora o cumprimentava, curvando-se até ao chão. Ao mesmo tempo entregou-lhe o papel.
Madelaine desdobrou-o e, como se encontrava próximo do candeeiro, pôde ler: «O presidente do tribunal apresenta os seus respeitos ao senhor Madelaine».
Amarrotou o papel nas mãos, como se tivesse achado nas poucas palavras que ele continha um sabor estranho e amargo. Em seguida acompanhou o oficial de diligências.
Dali a pouco achava-se numa espécie de gabinete estucado, de aspeto severo e alumiado por duas velas, colocadas sobre uma mesa de pano verde. Tinha ainda no ouvido as palavras do oficial de diligências, que acabara de o deixar: «Aqui é a casa do conselho, não tem mais do que levantar o fecho desta porta para se encontrar na sala da audiência, por detrás da cadeira do senhor presidente».
Estas palavras confundiram-se-lhe no pensamento com uma vaga recordação dos corredores estreitos e das escuras escadas que acabava de percorrer.
O oficial de diligências deixara-o só. Chegara o momento supremo. Diligenciava recolher o espírito, mas não o conseguia. É principalmente nos momentos em que há maior necessidade de ligar às pungentes realidades da vida todos os fios do pensamento, que eles se quebram no cérebro. Achava-se no sítio em que os juízes deliberam e condenam. Observava com estúpida tranquilidade aquela casa pacífica e temível, onde se tinham destruído tantas existências, onde o seu nome ia em breve ressoar e que o seu destino atravessava naquele momento. Olhava para si e admirava-se de ser aquela uma tal casa e de ser ele quem ali se encontrava.
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