A sua destreza ultrapassava ainda o vigor de que era dotado. Certos forçados, perpétuos sonhadores de evasões, chegam a fazer da força e da destreza combinadas, verdadeira ciência. É a ciência dos músculos. Uma completa e misteriosa estatística é quotidianamente posta em prática pelos presos, eternos invejosos dos pássaros e das moscas. Trepar por uma vertical e achar pontos de apoio onde apenas se via uma saliência, era um brinquedo para Jean Valjean. Dado o ângulo de uma parede, com a tensão das costas e das curvas das pernas, com os cotovelos e os calcanhares fincados nas asperezas da pedra, içava-se como por magia à altura de um terceiro andar. As vezes subia deste modo até ao telhado da prisão.
Jean Valjean falava pouco e nunca se ria. Era necessário uma comoção extraordinária para lhe arrancar, uma ou duas vezes por ano, aquele lúgubre riso do forçado, que é como que o eco de um rir infernal. Ao ver a expressão habitual do seu rosto, dir-se-ia que aquele homem trazia de contínuo os olhos fitos em alguma pavorosa visão. Andava, com efeito, absorto.
Por entre as confusas perceções de uma natureza incompleta e de uma inteligência atrofiada, Jean Valjean conhecia vagamente que pesava sobre ele o que quer que fosse de monstruoso. No meio da obscura e desmaiada penumbra em que se arrastava, de cada vez que voltava a cabeça e tentava elevar os olhos, via com terror misturado de raiva, surgir, erguer-se, elevar-se em alturas incomensuráveis, com horríveis escarpamentos, uma espécie de pavoroso montão de coisas, leis, preconceitos, homens e factos, cujos contornos mal distinguia, cuja aglomeração o amedrontava, e que não era nada mais do que essa maravilhosa pirâmide a que nós chamamos civilização.
No meio desse conjunto desigual e disforme, divisava aqui e além, ora próximo a ele, ora longe e em alturas inacessíveis, algum grupo, alguma saliência iluminada por um clarão mais vivo; aqui, por exemplo, o guarda-chusma com o seu azorrague, além o gendarme com o seu sabre, mais ao longe o arcebispo mitrado, mais acima ainda e no meio de uma como auréola resplandecente, o imperador coroado e coruscante. Parecia-lhe que esses longínquos esplendores, em vez de dissipar as trevas que o circundavam, as tornavam mais carregadas e fúnebres.
Tudo isso, leis, preconceitos, factos, homens, cruzava-se numa região superior, consoante o misterioso e complicado movimento que Deus imprime à civilização, caminhando por cima dele e esmagando-o com o que quer que era de serena crueldade e inexorável indiferença. Almas despenhadas no abismo do mais intenso infortúnio, homens infelizes perdidos no mais fundo desses limbos, para os quais ninguém deita os olhos, os réprobos da lei sentem sobre si todo o peso da sociedade humana, tão horrível para os que se acham de fora, tão terrível para os que se acham por baixo.
Vítima desta situação, Jean Valjean meditava. De que natureza poderiam ser as suas cogitações?
Se o grão de milho debaixo da mó pensasse, pensaria, sem dúvida, o que Jean Valjean pensava.
Todas estas coisas, realidades cheias de espectros, fantasmagorias cheias de realidade, tinham, por último, criado nele certo estado interior quase inexplicável.
Às vezes, no meio da sua tarefa de forçado, parava e punha-se a meditar. E então, a sua razão, conjuntamente mais aperfeiçoada e mais desorientada do que noutro tempo, revoltava-se contra o destino. Parecia-lhe absurdo quanto lhe tinha acontecido, afigurava-se-lhe impossível quanto o rodeava. Dizia no recôndito do seu pensamento: «Isto é um sonho». E olhava para o guarda-chusma que estacionava de pé a pequena distância dele; o guarda-chusma afigurava-se-lhe um fantasma; e, de repente, o fantasma descarregava-lhe uma chicotada.
Para ele mal existia a natureza visível. Não se ficaria muito longe da verdade, dizendo-se que para Jean Valjean não havia sol, nem amenos dias de estio, nem céu límpido, nem frescas madrugadas de abril. A única luz que, de ordinário, lhe iluminava a alma era um como clarão baço coado por ferros.
Resumindo, finalmente, o que pode ser resumido e traduzido por resultados positivos quanto acabamos de expor, limitar-nos-emos a dizer, que em dezanove anos, Jean Valjean, o inofensivo podador de Taverolles, o temível forçado de Toulon, tornara-se capaz , graças ao modo como as galés o tinham amoldado, de duas espécies de más ações: primeiro de uma má ação, rápida, irrefletida, filha do primeiro movimento, inteiramente instintiva, espécie de represálias pelo mal sofrido; segundo, de uma má ação, grave, considerada pesada em consciência e meditada com as falsas ideias que pode dar tão grande infortúnio. As suas premeditações passavam pelas três fases sucessivas, que só as naturezas de certa têmpera são capazes de percorrer: raciocínio, vontade, obstinação Tinha por instigadores a habitual indignação, a amargura da alma, o profundo conhecimento das iniquidades sofridas, a reação mesmo contra os bons, contra os inocentes e os justos, se é que os havia.
A origem e o alvo de todos os seus pensamentos era o ódio contra a lei humana, ódio que, não sendo sustado no seu desenvolvimento por algum acaso providencial, se transforma, chegado certo tempo, em ódio contra a sociedade, depois em ódio contra a humanidade, em seguida em ódio contra a criação, e se traduz por um vago, incessante e brutal desejo de fazer mal, seja a quem for, a um ser animado qualquer.
A vista disto, não era, pois, sem razão, que o passaporte classificava Jean Valjean de «homem perigosíssimo». De ano para ano, aquela alma fora-se dissecando cada vez mais, lenta mas fatalmente. Para corações insensíveis, olhos enxutos Quando saiu das galés, havia dezanove anos que Jean Valjean não vertera uma lágrima.
Homem ao mar!
Que importa? O navio não para. O vento é fresco e o navio tem um rumo que é obrigado a seguir. Não pode deter-se. Segue sempre.
O homem que caiu ao mar desaparece, torna a aparecer, mergulha, sobe à superfície, estende os braços, chama. Ninguém o ouve. O navio, balouçado pelas vagas, obedece ao impulso da manobra de quem o dirige; equipagem e passageiros nem sequer divisam já o homem submergido; a cabeça do infeliz é apenas um ponto escuro na imensidade do mar. No espaço retumbam os seus gritos desesperados ao ver o espectro daquela vela que lhe foge. Contempla-a, crava nela os olhos com frenesi. E ela afasta-se, vai decrescendo, vai-se esfumando, confundida no ambiente nebuloso do horizonte. Há pouco ainda que ele ia dentro desse navio, que fazia parte da sua equipagem, que passeava no convés com os outros, que tinha a sua parte de respiração e de sol, que era um vivo. Agora, que foi que sucedeu? Escorregou, caiu, acabou-se.
Ei-lo em luta com a voracidade da água. Tenta firmar os pés e não encontra um ponto de apoio; estende os braços e não encontra a que se apegar. As ondas revoltas e retalhadas pelo vento rodeiam-no medonhas. As vagas envolvem-no, sacudidas pelo vento em pavorosos escarcéus; as ondulações impetuosas e desencontradas do abismo fazem dele seu ludíbrio; a espuma das ondas fustiga-lhe a cara, como se fora a lava deste vulcão líquido, como se fora um escarro de pungente ironia atirado às faces do infeliz por aquele povoléu de vagas indómitas; a cada passo o dragão imenso abre as fauces de chofre e subverte-o, devora-o; e ele, de cada vez que mergulha, avista precipícios de trevas cerradas; medonhas vegetações desconhecidas o enleiam, emaranham-se-lhe nos pés, o atraem para si; sente que se torna abismo, faz parte da espuma, as vagas trazem-no aos repelões, bebe a amargura, o oceano porfia cobardemente no intento de o afogar, a imensidade zomba da sua agonia. Parece que toda aquela água lhe tem ódio.
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