Perguntou a si próprio se a sociedade humana podia ter o direito de fazer sofrer igualmente a todos os seus membros, num caso a sua desarrazoada imprevidência, noutro a sua previdente inexorabilidade, e de sequestrar para sempre a liberdade a um infeliz entre uma falta e um excesso: falta de trabalho, excesso de castigo. Se não era exorbitante que a sociedade assim tratasse injustamente os seus membros mais mal contemplados na repartição dos bens que dá o acaso, e, por conseguinte, mais dignos de consideração.
Propostas e resolvidas estas questões, julgou a sociedade e condenou-a. Condenou-a ao seu ódio. Tornou-a responsável pela sorte que experimentava e pareceu-lhe que talvez não hesitasse em pedir-lhe contas algum dia. A si próprio afirmou que não havia equilíbrio entre o dano que causara e o dano que lhe causavam; concluiu, por fim, que o seu castigo não era, na verdade, uma injustiça, mas uma incontestável iniquidade.
A cólera pode ser louca e absurda; pode o homem sentir-se irritado sem forte motivo para isso, mas a indignação tem sempre por base uma razão poderosa. Jean Valjean sentia-se indignado.
Além disso, a sociedade humana nunca lhe fizera senão mal; nunca lhe conhecera senão o aspeto irado, chamado por ela a sua justiça, que mostra àqueles a quem fere. Nunca homem algum se achegara a ele senão para o maltratar. O contacto com eles fora-lhe sempre motivo de alguma dor. Nunca mais, depois da sua infância, morta sua mãe, perdida sua irmã, nunca mais encontrara uma palavra amiga, um olhar benévolo De sofrimento em sofrimento, chegara a pouco e pouco à convicção de que a vida é uma guerra, guerra em que o vencido era ele. A única arma que possuía era o seu ódio. Resolveu afiá-la nas galés e levá-la consigo quando dali saísse.
Havia em Toulon uma escola para os forçados, na qual se ensinava o essencial a alguns daqueles desgraçados que tinham boa vontade. Jean Valjean foi do número desses homens Frequentou a escola tendo quarenta anos e aprendeu a ler, a escrever e a contar. Sentiu que desenvolvendo a inteligência, fortificava o seu ódio. Em certos casos, a instrução e a luz podem servir para desenvolver a maldade.
Triste é dizê-lo, mas depois de ter julgado a sociedade que o fizera desgraçado, julgou a Providência, que estabelecera a sociedade e condenou-a também.
Assim, durante aqueles dezanove anos de tormentos e escravidão, aquela alma elevara-se e precipitara-se ao mesmo tempo. Por um lado recebera luz, pelo outro as trevas
Jean Valjean não era dotado de maus instintos. Quando entrou para as galés, ainda não tinha perdido a natural bondade. Lá condenou a sociedade e conheceu que se tornara mau; condenou a Providência e tornava-se ímpio.
Não podemos continuar sem refletir um momento.
Em verdade, a natureza humana transforma-se assim tão completamente? O homem que saiu bom das mãos de Deus pode tornar-se mau entre as mãos do homem? A alma pode ser integralmente transformada pelo destino e tornar-se má, sendo mau esse destino? O coração pode tornar-se disforme e contrair enfermidades incuráveis sobre a pressão de um desproporcionado infortúnio, como a coluna vertebral debaixo de uma abóbada extremamente baixa? Acaso não existe na alma de qualquer homem, acaso não existia na alma de Jean Valjean em particular, uma centelha primitiva, um elemento divino, incorruptível neste mundo, imortal no outro, que pode desenvolver o bem, acender e fazer fulgurar esplendorosamente e que jamais o mal pode extinguir inteiramente? Graves e obscuras perguntas, à última das quais qualquer fisiologista talvez respondesse negativamente e sem hesitação, se tivesse visto em Toulon, nas horas de repouso, que para Jean Valjean eram horas de melancólica meditação, sentado, de braços cruzados, em cima de algum dos poiais que servem para a amarração dos navios, com a extremidade inferior da grilheta suspensa da abertura do bolso, para não andar com ela de rastos, aquele forçado taciturno, grave, silencioso e pensativo, pária das leis que contemplava os homens com aspeto irado, condenado pela civilização, que contemplava o céu com severidade.
Por certo que o fisiologista teria visto naquele homem uma miséria irremediável; teria lamentado aquele enfermo produzido pela lei, mas nem sequer tentaria um tratamento; desviaria os olhos das cavernas que entrevisse naquela alma, e, como Dante fez da porta do inferno, riscaria daquela existência a palavra que o dedo de Deus, apesar de tudo, escreveu na fronte de todo o homem: «Esperança!»
Seria este estado da alma de Jean Valjean, tão perfeitamente claro para ele, como nós diligenciámos que o fosse para quem nos lê? Jean Valjean veria acaso distintamente após a sua formação e veria distintamente à medida que se tinham ido formando, todos os elementos de que se compunha a sua miséria moral? Teria esse homem rude e ignorante claro conhecimento da sucessão de ideias, mediante a qual gradualmente subira e descera até aos lúgubres aspetos que eram, havia já tantos anos, o interior horizonte do seu espírito? Teria perfeita consciência de quanto se passara nele e todas as suas sensações?
É o que não ousaremos dizer; é até o que não acreditamos. Jean Valjean era demasiadamente ignorante para que, mesmo após tão grandes infortúnios, se não desse na sua alma um grande vácuo. Havia ocasiões em que nem ele próprio sabia ao certo o que experimentava. Jean Valjean jazia no meio das trevas, sofria no meio das trevas, odiava no meio das trevas. Vivia por hábito no meio desta escuridão, às apalpadelas como um cego ou como um homem que sonha.
De tempos a tempos, originado nele ou produzido por uma causa exterior, era de súbito acometido por um acesso de cólera e que era como um requinte de sofrimento, um pálido e rápido fulgor que lhe iluminava todas as sinuosidades da alma, fazendo repentinamente despontar em torno dele para qualquer parte que lançasse a vista, os pavorosos precipícios e sombrias perspetivas do seu destino, ao clarão de uma medonha luz.
Extinto esse fulgor, envolvia-o de novo a escuridão e nem ele próprio sabia onde se encontrava.
O característico das punições desta natureza, nas quais domina o inexorável, isto é, o elemento embrutecedor, é transformarem gradualmente, por uma espécie de estúpida transfiguração, um homem num animal perigoso. Algumas vezes num animal feroz. Bastariam para provar esta singular ação exercida pela lei sobre a alma humana, as necessárias e pertinazes tentativas de evasão levadas a efeito por Jean Valjean Ele renovaria essas tentativas, tão completamente ineficazes e tolas, tantas vezes quantas se lhe oferecesse ensejo para as realizar, sem refletir, por um só instante, nem no resultado nem nas experiências já feitas. Irrompia impetuoso, como o lobo que avista a janela aberta. Dizia-lhe o instinto: «Foge!» O raciocínio ter-lhe-ia decerto dito: «Não fujas!» Porém, diante de tão forte tentação, a razão desaparecia e ficava só o instinto. A besta era quem agia. Depois agarravam-no outra vez e as novas severidades que lhe infligiam apenas conseguiam torná-lo ainda mais bravio.
Uma particularidade se dava nele que não devemos omitir.
Jean Valjean era dotado de uma força física, a respeito da qual nenhum dos seus companheiros das galés o igualava. No trabalho de alar um cabo ou de puxar um cabrestante, valia por quatro homens. Levantava e conduzia muitas vezes às costas enormes pesos, substituindo quando era preciso o instrumento chamado «crie», que outrora tinha o nome de «orgueil», donde, seja dito de passagem, tomou nome a rua de Montorgueil. Em razão disto, os seus camaradas alcunharam-no de Jean-le-Cric. Uma ocasião, andando a fazer-se alguns reparos na varanda da casa da câmara de Toulon, uma das admiráveis cariátides de Puget que sustentam a varanda deslocou-se e esteve quase a vir a terra. Jean Valjean, que se encontrava próximo, deitou os ombros à cariátide e sustentou-a sozinho enquanto os outros operários não acudiram.
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