Após haver permanecido durante algum tempo nesta atitude, com ar pensativo, que teria parecido sinistra a quem assim o visse, acordado no meio da escuridão, numa casa em que todos dormiam, agachou-se de súbito, descalçou os sapatos, pô-los cautelosamente no capacho ao pé da cama, voltou à primitiva posição pensativa e ficou imóvel.
No meio das suas pavorosas meditações, as ideias que acima indicamos tumultuavam-lhe de contínuo no cérebro, entravam, saíam, tornavam a entrar, oprimiam-no como se carregasse um peso sobre ele, no meio de tudo isto, ocorria-lhe maquinalmente ao espírito, com singular pertinácia, a lembrança de um forçado chamado Brevet que ele conhecera nas galés, que usava as calças seguras apenas por um suspensório de algodão trabalhado a agulha de meia. Não se lhe afastava do espírito o desenho em xadrez daquele suspensório.
Conservava-se, pois, nesta posição e permaneceria nela indefinidamente até amanhecer, se não ouvisse o som do relógio, dando um quarto ou meia hora.
Dir-se-ia que aquela badalada lhe dissera: «Vamos!», porque se pôs logo de pé, hesitou ainda um instante, escutou, e, sentindo o mais completo silêncio em casa, encaminhou-se cautelosamente para a janela, que apenas entrevia A noite não estava muito escura, mas no céu corriam algumas nuvens impelidas pelo vento. Este estado do firmamento produzia, fora, alternativas de sombra e claridade, eclipses, por assim dizer, totais, e em seguida momentos do mais límpido luar; dentro de casa havia uma espécie de crepúsculo. Este crepúsculo, intermitente em virtude das nuvens, mas suficiente para distinguir os objetos, assemelhava-se à baça claridade que penetra pelo respiradouro de um subterrâneo, no meio da qual se refletem as sombras dos que passam.
Jean Valjean aproximou-se da janela e examinou-a. Não tinha grades, deitava para o jardim e, segundo o uso da terra, era apenas fechada por uma simples aldraba. Abriu-a, mas como no quarto penetrasse repentinamente uma rajada de vento frio, tornou logo a fechá-la, tendo previamente olhado para o jardim com olhar mais de investigação e estudo, do que de simples observação.
Viu neste exame que o jardim era cercado por um muro caiado, extremamente baixo e fácil de escalar. Além do muro, distinguiu a copa de algumas árvores igualmente espaçadas, o que indicava haver ali uma avenida ou rua arborizada.
Depois deste exame, fez um movimento como de quem tomou a sua resolução, dirigiu-se para a cama, pegou na mochila, abriu-a, revolveu-a, tirou de dentro qualquer coisa, que pôs em cima da cama, meteu os sapatos num bolso, atou o saco, deitou-o ao ombro, pôs o boné na cabeça, descendo a pala para os olhos, procurou o cajado às apalpadelas, foi pô-lo ao canto da janela, voltou outra vez para junto da cama e pegou resolutamente no objeto que tinha pousado sobre ela, e que parecia uma barra de ferro curta, aguçada como um chuço numa das extremidades.
Seria difícil perceber na escuridão o fim para que fora assim preparado aquele pedaço de ferro. Seria para servir de alavanca? Seria para servir de maça?
Visto à claridade, reconhecer-se-ia que não era mais do que um instrumento de cabouqueiro. Como então empregavam às vezes os forçados em extrair pedras das altas colinas que circundavam Toulon, não era raro que tivessem à sua disposição ferramentas daquele género.
Pegou no ferro com a mão direita e encaminhou-se para a porta do quarto imediato que era o do bispo, contendo a respiração e abafando os passos para não ser pressentido. Chegado à porta, encontrou-a entreaberta. O bispo não a tinha fechado
Jean Valjean escutou. Nem o mais leve ruído. Empurrou a porta. Empurrou-a com a ponta dos dedos, ligeiramente, com a furtiva e inquieta delicadeza do gato que quer entrar.
A porta cedeu à pressão e fez um movimento impercetível e silencioso, que alargou pouco mais a abertura. Deteve-se um momento, depois empurrou de novo a porta, desta vez com mais força.
A porta continuou a ceder silenciosa. A abertura era já suficientemente grande para que ele pudesse passar, mas uma mesa pequena, que formava com ela um ângulo, obstruía a entrada.
Jean Valjean reconheceu o obstáculo. Era necessário, custasse o que custasse, que a abertura se alargasse mais.
Decidiu-se e empurrou a porta pela terceira vez, mais energicamente do que das duas antecedentes. Desta vez, um dos gonzos, decerto enferrujado, soltou um grito rouco e prolongado no meio do silêncio.
Jean Valjean estremeceu. O ruído do gonzo soou-lhe aos ouvidos, estrondoso e tremendo, como a trombeta do juízo final.
Na fantástica exageração do primeiro momento, quase se lhe afigurou que aquele gonzo acabava de animar-se e assumir de repente vida terrível, latindo como um cão para avisar toda a gente e despertar os adormecidos.
Estacou, trémulo e desorientado, deixando-se cair das pontas dos pés sobre os calcanhares. As artérias temporais pulsavam-lhe com tal força, que as ouvia bater como dois martelos numa bigorna, afigurava-se-lhe que a respiração lhe saía do peito sussurrante, como uma rajada de vento saída de uma caverna. Parecia-lhe impossível que o horrível clamor daquele gonzo irritado não abalasse toda a casa, como medonho repelão de um terramoto; a porta empurrada por ele assustara-se e clamara; o velho não tardaria a levantar-se, as duas mulheres não tardariam a gritar, não tardaria a acudir gente em socorro; antes de um quarto de hora, a cidade estaria em movimento e a gendarmaria a postos. Por um instante considerou-se perdido.
Deixou-se pois ficar onde estava, petrificado como a estátua de sal e sem se atrever a fazer o menor movimento. Decorreram alguns minutos. A porta abrira-se de par em par. Jean Valjean espreitou para dentro do quarto. O mais completo sossego. O rangido do gonzo enferrujado não despertara ninguém.
Estava passado este primeiro perigo, mas nem por isso era menos terrível o tumulto que ainda se agitava dentro dele.
Jean Valjean, porém, não recuou. Não recuara nem mesmo na ocasião em que se considerara perdido. Do que tratava agora era de operar com presteza. Avançou um passo e entrou no quarto.
Este jazia no mais profundo silêncio. Aqui e além divisavam-se algumas formas vagamente confusas, que, vistas à claridade, eram papéis espalhados por cima de uma mesa, in-folios abertos, muitos volumes amontoados sobre um banco, uma poltrona carregada de roupa, um genuflexório, objetos que, àquela hora, eram apenas vultos informes, branquejando por entre as trevas.
Jean Valjean continuou a caminhar com a maior precaução, para não esbarrar com os móveis. Do lado oposto do quarto, ouvia a igual e serena respiração do bispo adormecido. De súbito, parou, porque se encontrava junto da cama, onde tinha chegado mais depressa do que pensara.
A natureza, às vezes, nos seus efeitos e espetáculos, estabelece com as nossas ações uma espécie de correlação tão sombria e inteligente, que parece querer, por meio dela, fazer-nos refletir e sondar-nos a nós próprios. Havia perto de meia hora que uma espessa nuvem cobria o céu. No momento em que Jean Valjean parou, em frente do leito, a nuvem rasgou-se, como se o fizesse de propósito, e um raio de luar, coando-se por entre a janela rasgada do quarto do bispo, veio subitamente iluminar o pálido rosto do prelado, que dormia serenamente. Resguardava-o do frio da noite, que nos Baixos Alpes se faz sentir com especial intensidade, uma camisola de lã escura, que lhe cobria os braços até aos pulsos. A cabeça debruçava-se-lhe sobre o travesseiro na atitude indolente do repouso; a mão, aquela mão de onde tinham saído tão boas e santas ações, pendia-lhe fora da roupa, ornada com o anel pastoral. O rosto iluminava-se-lhe de uma vaga expressão de satisfação, esperança e beatitude. Era mais do que sorriso, era quase irradiação. Respirava daquela fronte a inexprimível reverberação de uma luz que contempla um céu misterioso.
Читать дальше