— E disse-lhes — atalhou o bispo, sorrindo — que um pobre padre em casa de quem passara a noite lhos tinha dado? Os senhores não acreditaram e trouxeram-no aqui. Pois disse-lhes a verdade.
— Sendo assim, podemos deixá-lo ir? — perguntou o cabo.
— Sem dúvida — respondeu o bispo.
Os gendarmes largaram Jean Valjean, que recuou estupefacto.
— Então, estou livre?! — exclamou ele em voz quase inarticulada e como se falasse a dormir.
— Pois não ouviste? — disse um dos gendarmes .
— Meu amigo — tornou o bispo — não se vá embora sem levar os castiçais. Aqui os tem.
E, dirigindo-se ao fogão, pegou nos dois castiçais de prata e entregou-os a Jean Valjean.
As duas mulheres olhavam para tudo aquilo sem fazerem o menor gesto nem proferirem uma só palavra que pudesse contrariar o prelado.
Jean Valjean, que tremia como varas verdes, pegou maquinalmente nos dois castiçais, com ar desvairado.
— Agora — disse o bispo — vá em paz. É verdade, meu amigo, se voltar é escusado passar pelo jardim. Pode entrar e sair sempre pela porta da rua, que está fechada apenas por uma simples aldraba, seja de dia ou de noite. — E, em seguida, voltando-se para os gendarmes , acrescentou: — Os senhores podem retirar-se.
Os gendarmes saíram.
Jean Valjean sentiu-se como que prestes a desfalecer.
O bispo aproximou-se dele e disse-lhe em voz baixa:
— Não se esqueça nunca de que me prometeu empregar o dinheiro desta prata em tornar-se homem de bem.
Jean Valjean, que não se recordava de lhe ter prometido coisa alguma, ficou sem saber o que havia de dizer . O bispo, que acentuara muito as suas palavras, acrescentou:
— Jean Valjean, meu irmão, lembre-se que já não pertence ao mal, mas sim ao bem. Resgatei a sua alma. Libertei-a dos maus pensamentos e do espírito de perdição para a dar a Deus.
Jean Valjean saiu da cidade como se se soubesse perseguido. Principiou a caminhar apressadamente pelo meio dos campos, seguindo todos os caminhos e atalhos que se lhe ofereciam, sem reparar que a cada instante voltava aos mesmos lugares por onde já tinha passado. Assim andou vagueando toda a manhã, sem comer nem ter fome. Um sem número de sensações desconhecidas o agitavam. Sentia uma espécie de ira, mas nem sabia contra quem. Impossível lhe seria dizer se as sensações que o agitavam eram de arrependimento ou humilhação. Às vezes sentia-se acometido por um singular enternecimento, que repelia, opondo-lhe o endurecimento dos seus últimos vinte anos. Semelhante estado afligia-o. Assustava-se ao ver como dentro dele se abalava essa espécie de pavorosa serenidade que a injustiça do seu infortúnio lhe havia dado. A si mesmo perguntava o que é que viria substituir isso. Preferia ter ido entre os gendarmes para a cadeia ao desfecho que as coisas haviam tido, porque não se veria tão agitado.
Posto que a estação fosse bastante adiantada, viam-se, todavia, aqui e além, por entre as sebes, algumas flores extemporâneas, cujo cheiro, ao passar, lhe suscitava recordações da infância, que se lhe tornavam insuportáveis, porque havia muito que elas o não tinham acometido. Inexprimíveis pensamentos se amontoaram assim nele durante o dia todo.
Ao declinar do sol no ocidente, a essa hora em que a sombra do mais pequeno seixo se estende desmesuradamente no chão, encontrava-se Jean Valjean sentado atrás de uma moita, numa extensa e escalvada planície, absolutamente deserta. No horizonte apenas se avistavam os Alpes. Nem o vulto de um só campanário de alguma aldeia longínqua. Jean Valjean achava-se a três léguas de Digne, pouco mais ou menos. A poucos passos distante da moita, passava um carreiro que cortava a planície .
No meio da sua meditação, que não pouco contribuiria para tornar os seus andrajos mais medonhos a qualquer pessoa que o encontrasse, ouviu um rumor alegre.
Voltou a cabeça e viu, caminhando pelo carreiro, um rapazinho saboiano, de dez anos, pouco mais ou menos, cantando com a sua sanfona ao lado. Era um desses rapazinhos simplórios e alegres, que andam de terra em terra, com as calcinhas rotas e os joelhos à mostra.
O saboiano interrompia de vez em quando a cantiga e parava para atirar ao ar algumas moedas que trazia na mão e que constituíam talvez toda a sua fortuna. Entre elas havia uma moeda de quarenta soldos.
Chegando ao pé da moita, o pequeno parou sem ver Jean Valjean e atirou ao ar o punhado de soldos que, até então, tinha aparado nas costas da mão com toda a destreza.
Desta feita, porém, escapou-lhe a moeda de quarenta soldos, que rolou por entre o mato até onde estava Jean Valjean. Este viu-a e pôs-lhe o pé em cima.
O pequeno, que seguira a moeda com os olhos e vira perfeitamente onde ela tinha ido parar, não deu o menor indício de admiração e caminhou direito ao homem.
Era um lugar absolutamente solitário. Desde ali até onde a vista podia alcançar, não se avistava vivalma, nem na planície nem no carreiro. Apenas se ouvia o chilrear de um ou outro bando de passarinhos que atravessavam o espaço.
O rapazinho estava de costas voltadas para o sol, que parecia pôr-lhe fios de ouro na cabeça e purpureava o rosto selvagem de Jean Valjean de um reflexo cor de sangue.
— O senhor faz favor de me dar o meu dinheiro? — disse o pequeno, com essa infantil resolução que se compõe de ignorância e inocência.
— Como te chamas? — perguntou-lhe Jean Valjean.
— Gervásio.
— Então põe-te a andar! — tornou Jean Valjean.
— Mas dê-me o meu dinheiro! — replicou o rapazinho.
Jean Valjean curvou a cabeça e não respondeu.
O pequeno repetiu:
— O meu dinheiro! Dê-me o meu dinheiro!
Jean Valjean parecia não ouvir. O pequeno agarrou-o pela gola da blusa e abanou-o, diligenciando ao mesmo tempo tirar-lhe o pesado sapato ferrado de cima da moeda de quarenta soldos.
— Dê-me o meu dinheiro! — exclamava a pobre criança, debulhada em lágrimas.
Jean Valjean, que se encontrava ainda sentado, levantou a cabeça, fitou na criança os olhos embaciados com uma espécie de pasmo, e, por fim, exclamou em voz terrível, lançando a mão ao cajado:
— Quem está aí?
— Sou eu, senhor, sou o Gervásio! Faça favor de tirar o pé, dê-me o meu dinheiro! — Em seguida exclamou irritado e com um gesto ameaçador, apesar da sua estatura: — Tira o pé ou não tira? Vá, deixe-se de brincadeiras, dê-me o dinheiro!
— Pois tu ainda aí estás, tratante? — disse-lhe Jean Valjean. E, erguendo-se repentinamente, sem tirar o pé de cima da moeda, acrescentou: — Vais-te já embora, ou eu...
O rapazinho olhou para ele muito assustado, pondo-se a tremer como um vime e, ao cabo de alguns instantes de medrosa irresolução, deitou a fugir, correndo quanto podia, sem se atrever a olhar para trás nem a soltar um grito.
Todavia, a certa distância, cansado pela correria parou; e, apesar da sua abstração, Jean Valjean ouviu-o soluçar.
Passados alguns instantes, o rapazinho tinha desaparecido. Era sol posto. A noite ia descendo gradualmente. Jean Valjean principiou a ver-se rodeado pelas sombras; não tinha comido nada em todo o dia, e era provável que tivesse fome.
Desde que o pequeno saboiano se afastara que se conservava de pé e sem mudar de atitude. A respiração elevava-lhe o peito com intervalos prolongados e incertos. O seu olhar, fito a dez ou doze passos de distância, parecia estudar com profunda atenção a forma de um caco de louça azul que jazia entre a erva. De repente, estremeceu, ao sentir a primeira impressão da aragem da noite.
Enterrou mais o boné na cabeça, sobrepôs e apertou maquinalmente a blusa, deu um passo e curvou-se para levantar do chão o cajado.
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