No momento em que o raio de luz se sobrepôs, por assim dizer, àquela claridade interior, o vulto do bispo adormecido destacou-se como no meio de uma auréola, ficando, todavia, este espetáculo suave velado por uma luz mal distinta, mas inefável. A Lua no céu, o repouso da natureza, o jardim em perfeita quietação, a casa em completo sossego, a hora, a ocasião, o silêncio, tudo acrescentava um não sei quê de solene e indizível ao venerável repouso daquele homem, envolvendo, numa majestosa e serena auréola, aqueles cabelos brancos e os olhos fechados, a fronte em que tudo era esperança e confiança, a cabeça de ancião e o sono infantil.
Havia naquele homem, sem que ele o suspeitasse, o que quer que fosse quase divino.
Jean Valjean conservou-se na sombra, de pé, imóvel, com a barra de ferro na mão, a braços com a mais estranha impressão. O aspeto daquele ancião coruscante apavorava-o. Nunca na sua vida vira coisa semelhante. O seu grande destemor amedrontava-o.
O mundo moral não possui mais grandioso espetáculo do que o de uma consciência perturbada e inquieta chegada à beira de uma má ação e contemplando o sono de um justo.
Esse sono, naquele isolamento e com um vizinho de semelhante estofo, tinha o que quer que fosse de sublime, que ele próprio sentia, vaga mas imperiosamente.
Ninguém, nem ele mesmo, pudera dizer o que dentro dele se passava. Para tentar avaliá-lo é necessário imaginar o que há de mais violento em presença do que há de mais suave. Nem no rosto se lhe pudera distinguir coisa alguma com certeza. Sentia uma espécie de assombro desvairado. Contemplava aquele vulto. Nada mais. Qual era o seu pensamento? Seria impossível adivinhá-lo. O que era evidente é que ele se achava impressionado e profundamente abalado. Mas de que natureza era esta comoção?
O seu olhar não se afastava do ancião. A única coisa que claramente deixara transparecer a atitude e a fisionomia dele era uma singular perplexidade. Dir-se-ia que hesitava entre dois abismos: entre o da perdição e o da salvação. Parecia prestes a esmagar aquela cabeça ou a beijar aquela mão.
Ao cabo de alguns instantes, levantou vagarosamente o braço esquerdo à altura da testa, tirou o boné, tornou a deixar cair o braço com a mesma lentidão e voltou à sua primitiva postura de contemplação, com o boné na mão esquerda, a barra de ferro na direita, os cabelos eriçados, a expressão do rosto selvática.
O bispo continuava a dormir com a maior serenidade sob aquele temeroso olhar.
O reflexo do luar tornava confusamente visível por cima do fogão o vulto do crucifixo, que parecia abrir os braços a ambos, com uma bênção para um e o perdão para o outro.
De repente, Jean Valjean pôs o boné na cabeça, caminhou rapidamente ao longo da cama, sem olhar para o bispo, direito ao armário, que ele entrevia junto à cabeceira. Feito isto, levantou a barra de ferro como para forçar a fechadura, mas viu nela a chave. Apenas abriu a portinhola, deparou-se-lhe logo o açafate em que estava a prata; pegou nele, atravessou o quarto a largas passadas, sem a menor precaução, indiferente ao ruído que poderia produzir, chegou à porta, entrou no oratório, abriu a janela, pegou no cajado, saltou para o jardim, meteu a prata na mochila, atirou para longe de si o açafate, transpôs o muro como o faria um tigre e fugiu.
No dia seguinte, ao nascer do sol, andando Monsenhor Bemvindo a passear no jardim, viu Magloire vir a correr na sua direção com ar transtornado.
— Monsenhor! Monsenhor! — gritou ela. — Sabe onde está o açafate da prata?
— Sei — respondeu o bispo.
— Ora graças a Deus! — tornou ela. — Já não sabia o que pensar!
O bispo que naquele instante levantava o açafate de um alegrete, apresentou-o à senhora Magloire.
— Está aqui.
— Mas não tem nada dentro. E a prata?
— Ah! — replicou o bispo. — Era a prata que procurava? Não sei onde está.
— Jesus! Roubaram-na! Foi decerto o homem que cá ficou!
Num abrir e fechar de olhos, com a vivacidade própria de velha sagaz e bem conservada, Magloire correu ao oratório, entrou na alcova e voltou logo para junto do bispo. Este agachara-se havia um instante e contemplava com a maior tristeza um pé de cocleária de Guillons que o açafate tinha quebrado ao cair no meio do alegrete; ao ouvir, porém, os gritos de Magloire, ergueu-se.
— Ai, Monsenhor! O homem roubou a prata e fugiu! — Ao mesmo tempo que soltava esta exclamação, dirigiu o olhar para o muro, onde se viam os vestígios da escalada. — Olhe, foi por ali que ele fugiu! Saltou para a travessa de Cachefilet. Que crueldade! Roubar-nos a prata!
O bispo conservou-se por momentos silencioso; por fim, disse com a maior serenidade, erguendo os olhos para Magloire:
— Aquela prata pertencia-nos porventura?
Magloire ficou sem saber o que havia de responder.
Seguiu-se outra pausa, após a qual o bispo prosseguiu:
— Magloire, há muito tempo que eu era ilícito possuidor daquela prata, que pertencia de direito aos pobres. E quem era aquele homem? Não era, sem a menor dúvida, um pobre?
— Valha-me Nossa Senhora! — replicou Magloire. — Não falo por mim, nem pela senhora Baptistina, a nós não nos faz falta, mas com Monsenhor já não sucede o mesmo. Com que talher há de comer agora?
O bispo encarou-a com ar de espanto e respondeu:
— Essa agora! Pois não há colheres de estanho?
Magloire encolheu os ombros.
— O estanho tem mau cheiro.
— Nesse caso, há os de ferro.
A criada fez uma careta expressiva, dizendo:
— O ferro tem muito mau sabor.
— Pois então, colheres de pau.
Daí por alguns instantes, o bispo estava a almoçar naquela mesma mesa em que Jean Valjean, no dia antecedente, estivera sentado. No decurso do almoço, Monsenhor Bemvindo notou, gracejando, a sua irmã, que não proferira palavra, e a Magloire, que resmungava surdamente, não ser preciso garfo nem colher, mesmo de pau, para molhar um pedaço de pão numa chávena de leite.
— Nunca se viu uma coisa assim! — dizia Magloire, andando de um para outro lado. — Recolher um homem daqueles e deitá-lo quase ao pé de si! Ainda devemos dar graças a Deus por só nos ter roubado! Parece-me que ainda sinto um estremecimento quando me lembro de semelhante coisa!
No instante em que o bispo e a irmã se levantaram da mesa, bateram à porta.
— Entre — disse o bispo.
A porta abriu-se e um estranho e violento grupo assomou no limiar. Três homens traziam um quarto agarrado no meio deles. Os três eram gendarmes , o quarto era Jean Valjean.
Apenas em presença do bispo, o gendarme que parecia ser o comandante do grupo adiantou-se para ele, fazendo a continência militar e disse:
— Monsenhor...
Ouvindo este tratamento, Jean Valjean, que se mostrava sombrio e abatido, ergueu a cabeça com ar de estupefação e murmurou:
— Monsenhor?! Pensei que era o cura...
— Silêncio! — ordenou um dos gendarmes . — É o senhor bispo.
Entretanto, Monsenhor Bemvindo aproximara-se dos homens com a presteza que lhe permitia a sua avançada idade e exclamou, com os olhos fitos em Jean Valjean:
— Ah, então voltou?! Estimo muito tornar a vê-lo. Mas agora me lembro: eu também lhe dei os castiçais, que são de prata, como o resto, e que lhe podem render duzentos francos ou mais. Porque não os levou?
Jean Valjean abriu os olhos e encarou o venerável bispo com uma expressão que nenhuma linguagem poderia traduzir.
— Então é verdade o que este homem disse, Monsenhor? — perguntou o cabo que comandava os gendarmes . — Nós encontrámo-lo como quem ia a fugir e prendemo-lo como suspeito. Levava consigo esta prata...
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