Efetivamente, Magloire acabava de pôr a mesa. Ao mesmo tempo que andava neste serviço, conversava com Baptistina.
Sobre a mesa que ficava próxima do fogão estava colocado um candeeiro. No fogão crepitava uma boa fogueira.
Facilmente se pode imaginar o aspeto daquelas duas mulheres, ambas com mais de sessenta anos. Magloire, baixa, gorda e ágil; Baptistina, magra, débil, meiga, um pouco mais alta do que o irmão, trajando um vestido de seda cor de castanha, que era a cor da moda em 1806, o qual ela comprara em Paris nesse ano e que ainda lhe durava. Para nos servirmos de uma dessas locuções vulgares que têm o mérito de exprimir numa só frase uma ideia que mal se desenvolveria numa página, Magloire parecia uma campónia e Baptistina uma fidalga.
Magloire trazia uma touca branca de rufos na cabeça, um cordãozinho de ouro ao pescoço, único adereço feminino que havia em casa, um lenço preto posto por baixo de um vestido de lã preto, com mangas largas e curtas, um avental de chita de quadrados verdes e vermelhos, atado à cintura por uma fita verde, nos pés, sapatos grossos e meias amarelas, como as mulheres de Marselha.
O vestido de Baptistina era talhado pelos moldes de 1806: cinta curta, saia de pouca roda, mangas de dragonas com abas e botões. Uma touca especial ocultava-lhe os cabelos brancos.
Magloire tinha ar de inteligência, bondade e agilidade; os cantos da boca desigualmente contraídos, e o lábio superior mais grosso do que o inferior, davam-lhe uma expressão de orgulhosamente imperial. Enquanto o bispo não exprimia a sua vontade, ela falava resolutamente, com certa liberdade misturada de respeito, mas apenas ele a manifestava, obedecia-lhe tão submissamente como Baptistina.
Quanto a Baptistina, esta nem sequer abria a boca. Limitava-se a obedecer e a condescender. Ainda mesmo em nova, não fora bonita; tinha olhos grandes e azuis à flor do rosto, nariz comprido acavaletado; mas o seu aspeto indicava inefável bondade, fora predestinada para a mansidão. Mas a fé, a caridade e a esperança, estas três virtudes que reanimam a alma, foram gradualmente elevando essa mansidão a santidade. A natureza fizera-a ovelha, a religião fê-la anjo. Pobre santa! Doce recordação desvanecida!
Baptistina referiu tantas vezes, no decorrer do tempo, o que naquela noite se passou no paço, que muitas pessoas, que ainda hoje vivem, se recordam de todos os pormenores da narração.
Na ocasião em que o bispo entrou, Magloire falava com certa vivacidade. Conversava com Baptistina sobre um assunto que lhe era familiar e ao qual o bispo estava acostumado. Tratava-se da porta da rua.
Parece que, na ocasião em que saíra a fazer compras para a ceia, Magloire ouvira dizer certas coisas em diversos lugares. Falava-se de um homem de má catadura, de um vagabundo suspeito, que nesse dia tinha chegado à cidade, onde decerto ainda permanecia; dizia-se que era provável que nessa noite quem se recolhesse tarde, tivesse algum mau encontro. Que a polícia era a culpada. Mas como não havia de ser assim, se o prefeito e o maire, por causa da sua inimizade, do que tratavam era de comprometer-se mutuamente, deixando andar tudo ao Deus dará? Que pertencia à gente prudente incumbir-se da polícia e guardar-se a si mesma, tendo o cuidado de fechar e aferrolhar bem as portas. Magloire acentuou muito estas últimas palavras, mas o bispo que vinha do seu quarto, onde sentira frio, sentou-se em frente do fogão a aquecer-se, com o pensamento, ao que parecia, distraído noutras coisas. Por consequência, passava desapercebida para ele a frase que Magloire acentuava de propósito. Repetiu-a. Então, Baptistina, querendo satisfazer Magloire, sem desgostar o irmão, aventurou-se a dizer timidamente:
— O irmão ouviu o que disse Magloire?
— Vagamente — respondeu o bispo.
Depois, voltando um pouco a cadeira, descansou as mãos nos joelhos e, erguendo para a velha criada o rosto cordial e risonho, a que o clarão da fogueira punha um tom insinuante, acrescentou:
— Então, o que há? Que sucedeu?
Magloire repetiu a história desde o princípio, exagerando-a até sem dar por isso. Era o caso que, àquela hora, se encontrava na cidade um vagabundo esfarrapado, uma espécie de mendigo, perigoso, o qual se apresentara a pedir pousada em casa de Jacquin Labarre, que não quisera recolhê-lo, e a quem tinham visto no boulevard Gassendi e andar a vaguear pelas ruas próximas ao anoitecer. Era uma espécie de malandrim com uma cara de meter medo.
— Sim? — disse o bispo.
A condescendência do prelado em interrogá-la animou Magloire, a quem, no seu entender, esta circunstância indicava que o bispo não estava longe de se assustar; portanto, prosseguiu com ar triunfante:
— É como lhe digo, Monsenhor. Tenho o pressentimento de que esta noite acontece alguma desgraça na cidade! E ainda para mais, a polícia deixa correr tudo sem tomar providências (repetição inútil). Viver numa terra montanhosa e nem sequer haver à noite lampiões pelas ruas! Se alguém sai, arrisca-se a uma desgraça na escuridão! A menina também é da minha opinião, Monsenhor.
— Eu? — atalhou Baptistina. — Eu não digo nada. O que o meu irmão fizer é sempre bem feito.
Magloire continuou, como se não tivesse ouvido o protesto:
— Dizíamos há pouco que esta casa está muito mal segura e que se Monsenhor o permitisse, eu iria ainda hoje chamar o serralheiro Paulino Musebois para vir pôr os antigos fechos que a porta tinha; estão ali, é um instante. E digo que são precisos os fechos, ainda que não seja senão por esta noite, porque uma porta que para se abrir de fora basta levantar uma aldraba é de fazer a gente andar sempre em sobressalto; e, ainda para mais, Monsenhor tem o costume de mandar logo entrar, e lá pela noite morta nem é preciso pedir licença...
Neste momento bateram à porta com força.
— Entre quem é — disse o bispo.
III—Heroísmo da obediência passiva
A porta abriu-se.
Abriu-se de par em par, como se alguém a empurrasse com energia e resolução.
Entrou um homem.
Este homem já nós conhecemos. Era o forasteiro que vimos há pouco a divagar em busca de pousada.
Depois de entrar, deu um passo e parou, deixando atrás de si a porta aberta. Trazia a mochila às costas, o cajado na mão. A expressão do seu olhar era rude, atrevida, fatigada e violenta. Era uma aparição sinistra.
Magloire nem força teve para gritar. Estremeceu e ficou boquiaberta.
Baptistina voltou-se e, avistando o homem no momento em que ele entrava, fez menção de erguer-se, aterrada por semelhante visita. Depois, lentamente, voltou-se para o lado do fogão, fitou os olhos no irmão e a expressão do seu rosto tornou-se completamente serena.
O bispo fitava o desconhecido com aspeto tranquilo.
No momento em que ele abria a boca para perguntar sem dúvida ao recém-chegado o que desejava, o homem encostou-se ao cajado com ambas as mãos, olhou para o velho e para as duas mulheres e, sem esperar que o bispo falasse, disse em voz alta:
— Chamo-me Jean Valjean. Sou um forçado das galés, onde estive dezanove anos. Há quatro dias que fui posto em liberdade e vou a caminho de Pontarlier, que é o meu destino. Ainda não parei desde que saí de Toulon. Hoje andei doze léguas a pé. Cheguei aqui quase à noite e fui a uma estalagem onde não me quiseram recolher por causa do meu passaporte amarelo, que tinha apresentado na mairie, por não ter outro remédio. Fui a outra estalagem e disseram-me: «Põe-te daqui para fora!». Assim tenho andado de um lado para outro, sem ninguém me querer recolher. Bati à porta da cadeia e o carcereiro não ma quis abrir. Recolhi-me na casinhota dum cão, mas o cão mordeu-me e expulsou-me como o faria um homem. Pareceu-me que também sabia quem eu era Parti em direção ao campo, com intenção de dormir ao relento. O céu estava encoberto, e eu, lembrando-me que poderia chover e que Deus não estaria para obstar a que a chuva caísse, voltei para a cidade a fim de me abrigar no vão de alguma porta. Estava eu ali no largo, deitado em cima de um banco de pedra, quando uma senhora já idosa que ia a passar me indicou a sua casa e me disse: «Bata além!» Assim fiz. Agora, diga-me, o que é isto aqui? Se é uma estalagem, tenho dinheiro para pagar. Cento e nove francos e quinze soldos, que ganhei nas galés em dezanove anos com o meu trabalho. Que tem lá isso? Para que serve o dinheiro? Andei doze léguas a pé, estou estafado e tenho fome. Posso ficar?
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