A Universidade havia sido reconstruída, ou melhor, havia reconstruído a si mesma. Ou, de algum modo, jamais fora destruída: cada fio de hera, cada batente apodrecido de janela estava de volta ao seu lugar. O fonticeiro tinha se oferecido para deixar tudo novo — a madeira brilhando, as pedras imaculadas —, mas o bibliotecário se mantivera firme na decisão. Queria tudo velho.
Os magos chegaram com o alvorecer, sozinhos ou em grupos de dois, e correram para os quartos antigos, tentando evitar olhares alheios, tentando lembrar um passado recente que já se tornava irreal e imaginário.
Conina e Nijel chegaram por volta da hora do café-da-manhã e procuraram uma estrebaria de aluguel para o cavalo de Guerra. [21] Que sabiamente decidiu parar de voar, jamais foi reivindicado e passou o resto de seus dias transportando carga para uma senhora. Não se sabe o que Guerra fez a esse respeito. É quase certo que tenha arranjado outro cavalo.
Foi Conina quem insistiu para que procurassem Rincewind na Universidade, e que, portanto, viu os livros antes de todo mundo.
Eles saíam voando da Torre de Arte, contornavam os prédios da Universidade e se precipitavam pela porta da biblioteca reencarnada. Um ou dois volumes mais atrevidos perseguiam pardais ou planavam como águias sobre o pátio.
O bibliotecário estava recostado na porta, observando suas incumbências com olhos benévolos. Ele balançou as sobrancelhas para Conina — o mais perto que já chegara de um cumprimento convencional.
— O Rincewind está aqui? — perguntou ela.
— Oook.
— O quê?
O macaco não respondeu; apenas tomou os dois pela mão e, caminhando entre eles como um saco entre dois postes, conduziu-os à torre.
Havia algumas velas acesas no interior, e eles avistaram Coin, sentado num banco. O bibliotecário levou-os até o menino, como um criado velho na mais antiga das famílias, e retirou-se.
Coin olhou para os dois.
— Ele sabe quando não o entendem — explicou. — Extraordinário, não é?
— Quem é você? — perguntou Conina.
— Coin — respondeu Coin.
— É aluno aqui?
— Acho que estou aprendendo um bocado.
Nijel mantinha-se junto às paredes, tocando-as de vez em quando. Tinha de haver uma boa razão para não terem caído, mas, se houvesse, não se encontrava nos limites de conhecimento da engenharia civil.
— Vocês estão procurando Rincewind? — indagou Coin.
Conina franziu a testa.
— Como adivinhou?
— Ele me disse que algumas pessoas viriam procurá-lo.
Conina relaxou.
— Desculpe — pediu. — Passamos por alguns momentos difíceis. Achei que pudesse ser magia. Ele está bem? O que aconteceu? Ele lutou contra o fonticeiro?
— Ah, lutou. E venceu. Foi muito… interessante. Eu vi tudo. Mas, depois, ele teve de ir embora — disse Coin, como se falasse algo decorado.
— Do nada? — surpreendeu-se Nijel.
— É.
— Eu não acredito — protestou Conina.
Ela estava começando a se agachar, os nós dos dedos embranquecendo.
— É verdade — rebateu Coin. — Tudo que eu digo é verdade. Tem de ser.
— Eu quero… — começou Conina.
Mas Coin se levantou, estendeu o braço e disse:
— Pare.
Ela congelou. Nijel se retesou quando começava a franzir a testa.
— Vocês vão sair daqui — disse Coin, com voz equilibrada e tranqüila. — E não vão mais fazer perguntas. Vão se sentir completamente satisfeitos. Já têm todas as respostas. Vão viver felizes para sempre. Vão se esquecer de ter ouvido essas palavras. Agora saiam.
Os dois se viraram lenta e rigidamente, como marionetes, e avançaram para a porta. O bibliotecário abriu-a, deixou-os passar e fechou-a.
Olhou para Coin, que voltou a se sentar no banco.
— Tudo bem, tudo bem — irritou-se o menino. — Mas foi só um pouquinho de magia. Não tive escolha. Você mesmo disse que as pessoas precisavam esquecer.
— Oook?
— Não consigo evitar! É fácil demais mudar tudo! — Ele pôs as mãos na cabeça. — Só tenho de pensar em alguma coisa! Não posso ficar, tudo em que eu toco dá errado, é como tentar dormir sobre um monte de ovos! Esse mundo é delicado demais! Por favor, me diga o que fazer!
O bibliotecário sentou-se e girou o corpo algumas vezes, sinal evidente de pensamento profundo.
Não se sabe exatamente o que ele disse, mas Coin sorriu, assentiu e apertou a mão do bibliotecário. Depois, abriu as próprias mãos, agitou-as no ar e entrou em outro mundo. Havia um lago e montanhas distantes, e alguns faisões o observavam, desconfiados, debaixo das árvores. Era a magia que todos os fonticeiros acabavam aprendendo.
Os fonticeiros nunca se tornavam parte do mundo. Apenas usavam-no durante algum tempo.
Da metade do gramado, ele olhou para trás e acenou para o bibliotecário. O macaco fez que sim com a cabeça, à guisa de incentivo.
Então a bolha encolheu, e o ultimo fonticeiro partiu deste para um mundo próprio.
Embora não tenha muito a ver com a história, é interessante notar que, a cerca de oitocentos quilômetros dali, um pequeno bando, ou, nesse caso, rebanho, de aves viesse abrindo caminho entre as árvores. Elas tinham cabeça de flamingo, corpo de peru e perna de lutador de sumo. Andavam de maneira espasmódica e bamboleante, como se a cabeça fosse presa aos pés por fitas elásticas. Pertenciam a uma espécie singular mesmo para a fauna do Disco, já que seu principal meio de defesa era fazer o predador rir tanto que conseguiam fugir antes de ele se recuperar.
Rincewind teria ficado ligeiramente satisfeito em saber que se chamavam múnus.
O movimento estava fraco na Tambor Remendado. O troll acorrentado ao batente da porta sentou-se à sombra e tirou alguém dos dentes.
Creosoto cantava baixinho para si mesmo. Ele havia descoberto a cerveja e não estava tendo de pagar pela bebida, porque a moeda forte dos elogios — raramente empregada pelos namorados de Ankh — vinha surtindo um efeito inacreditável na filha do proprietário. Era uma menina grandona, afável, com o corpo da mesma cor e — falando sem rodeios — da mesma forma de um pão cru. Ela estava intrigada. Ninguém jamais dissera que seus seios pareciam melões adornados de jóias.
— Com certeza — disse o xerinfe, escorregando do banco. — Sem dúvida.
Fossem os grandes, amarelos, ou os pequenos verdes com pele rugosa, pensou ele.
— E o que você falou dos meus cabelos? — perguntou ela, trazendo-o de volta ao banco e enchendo o copo.
— Ah — o xerinfe franziu a testa. — São como um rebanho de cabras a pastar nas colinas de Monte Não Sei Quê, sem dúvida alguma. Quanto às suas orelhas — acrescentou ele, às pressas —, são conchas rosadas que adornam as areias beijadas pelo mar de…
— Como assim, um rebanho de cabras? — perguntou ela.
O xerinfe hesitou. Sempre achara aquele um de seus melhores versos. Agora, pela primeira vez, ele se deparava com o famoso caráter prático de Ankh-Morpork. Por incrível que pareça, ficou impressionado.
— Quer dizer, em tamanho, forma ou cheiro? — insistiu a menina.
— Eu acho — respondeu o xerinfe — que a frase que eu tinha em mente era exatamente não são como um rebanho de cabras.
— Ah.
A garota puxou o garrafão para si.
— E acho que aceitaria outro copo — acrescentou ele, de maneira indistinta. — E então… e então… — olhou de esguelha para a garota e decidiu correr o risco. — Você é boa contadora de histórias?
— O quê?
Ele lambeu os lábios, subitamente secos.
— Conhece muitas histórias? — murmurou.
— Ah, conheço. Pencas.
— Pencas? — gemeu Creosoto.
A maioria das concubinas só sabia uma ou duas.
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