— Ah — disse Coin.
Ele observou o bibliotecário caminhar pesadamente de volta à Torre de Arte e sentiu uma solidão terrível.
— Ei! — gritou.
— Oook?
— O que eu faço agora?
— Oook?
Coin agitou os braços, em desespero.
— Talvez eu pudesse fazer alguma coisa — sugeriu, com uma voz que beirava o pânico. — Você não acha que seria boa idéia? Quer dizer, eu poderia ajudar as pessoas. Você, com certeza, gostaria de voltar a ser gente, não gostaria?
O eterno sorriso do bibliotecário ergueu-se o suficiente para revelar os dentes.
— Tudo bem, talvez não — apressou-se em dizer Coin. — Mas tem outras coisas que eu poderia fazer, não tem?
O bibliotecário encarou-o durante algum tempo, então voltou os olhos para a mão do menino. Cheio de culpa, Coin se sobressaltou e abriu os dedos.
O macaco pegou a pequena bola prateada pouco antes de ela atingir o chão e suspendeu-a a altura do olho. Cheirou-a, balançou-a de leve e colocou-a junto ao ouvido.
Depois levantou o braço e atirou-a o mais longe possível.
— O que… — começou Coin, e caiu estirado na neve quando o bibliotecário o empurrou e se jogou sobre ele.
A bolinha girou no ar e tombou no chão. Houve um ruído de corda de harpa se partindo, um breve murmúrio de vozes incompreensíveis, um sopro de vento quente, e os deuses do Disco estavam livres.
Também estavam muito irritados.
— Não tem nada que a gente possa fazer? — perguntou Creosoto.
— Não — respondeu Conina.
— O gelo vai vencer? — perguntou Creosoto.
— Vai — respondeu Conina.
— Não — esbravejou Nijel.
Ele tremia de raiva, ou talvez de frio, e estava quase tão branco quanto as geleiras que passavam trovejando abaixo deles. Conina suspirou.
— Como você acha… — começou ela.
— Ponham-me lá embaixo, alguns minutos à frente deles — exigiu Nijel.
— Não sei como isso ajudaria.
— Não pedi sua opinião — rebateu Nijel, em voz baixa. — Só façam o que eu disse. Ponham-me lá embaixo, um pouco à frente deles, para eu ter tempo de me preparar.
— De se preparar para quê?
Nijel não respondeu.
— Eu perguntei — irritou-se Conina — de se preparar…
— Quieta!
— Não sei por que…
— Olhe aqui — disse Nijel, com a paciência que fica a um passo do assassinato a machadadas. — O gelo vai cobrir o Disco inteiro, certo? Todos vão morrer, não é? Menos a gente, durante algum tempo, até esses cavalos quererem comer, usar o banheiro ou o que for, o que não nos vale de muita coisa, a não ser pelo fato de que Creosoto talvez tenha tempo de escrever um soneto sobre como ficou frio de repente e como a espécie humana está prestes a acabar, e, nessas circunstâncias, eu gostaria de deixar bem claro que não vou tolerar objeções, ficou entendido?
Ele parou para tomar fôlego, tremendo feito corda de harpa.
Conina hesitou. Abriu e fechou a boca algumas vezes, considerando objetar. Pensou melhor.
Eles encontraram uma pequena clareira numa floresta de pinheiros, dois ou três quilômetros à frente do rebanho, embora fosse nítido o barulho das geleiras e houvesse vapor sobre as árvores, sem dizer que o chão tremia como pele de tambor.
Nijel avançou para o centro da clareira e treinou alguns golpes com a espada. Os outros o observavam, pensativos.
— Se você não se importa — sussurrou Creosoto para Conina —, eu vou embora. E nessas horas que a lucidez perde seus atrativos, e tenho certeza de que o fim do mundo vai parecer melhor depois de umas bebidas. Você acredita no Paraíso, ó flor das faces de pêssego?
— Não.
— Ah — lamentou Creosoto. — Bem, nesse caso, provavelmente não vamos nos ver mais. — Ele suspirou. — Que pena! Tudo isso por causa do tal múnus. Hum. É claro que, se por acaso…
— Tchau — cortou Conina.
Com tristeza, Creosoto assentiu, afastou o cavalo e desapareceu sobre as copas das árvores.
Em torno da clareira, caía neve dos galhos. O estrondo das geleiras cada vez mais próximas enchia a atmosfera.
Nijel levou um susto quando ela o cutucou no ombro, e deixou cair a espada.
— O que está fazendo aqui? — perguntou, tateando a neve em desespero.
— Olhe, eu não quero me intrometer nem nada — murmurou Conina. — Mas o que exatamente você tem em mente?
Já era possível avistar o monte de neve e terra impelido pelas geleiras. Ao estrondo da marcha, agora se juntava o ruído dos troncos de árvores se partindo. E, avançando implacavelmente sobre as copas, tão alto que a princípio se confundiam com o céu, divisavam-se as dianteiras verde-azuladas.
— Nada — admitiu Nijel. — Nadinha de nada. Mas temos de opor resistência. É o que há a fazer. É para o que estamos aqui.
— Não vai fazer diferença — argumentou Conina.
— Para mim, vai. Se vamos morrer de qualquer maneira, prefiro morrer assim. Heroicamente.
— E heróico morrer assim? — perguntou Conina.
— Eu acho que é — respondeu ele. — E, quando o assunto é morte, só conta uma opinião.
— Ah.
Dois veados entraram às cegas na clareira, ignoraram os seres humanos amedrontados e fugiram em disparada.
— Você não precisa ficar — disse Nijel. — Eu tenho o meu múnus, entende?
Conina olhou o dorso das próprias mãos.
— Acho que devo, sim — disse. E acrescentou: — Sabe, eu achei que, se a gente pudesse se conhecer melhor…
— Sr. e Sra. Lebremar, era isso o que você tinha em mente? — perguntou ele, com rispidez.
Ela arregalou os olhos.
— Bem… — começou.
— Qual dos dois seria você? — perguntou ele.
A geleira da frente atingiu a clareira, com o cimo perdido numa nuvem de sua própria criação.
No mesmo instante, as árvores do lado oposto se curvaram ao sopro de um vento quente chegado da Borda. O vento vinha carregado de vozes — irritadas, severas — e entrou nas nuvens como ferro quente em água fria.
Conina e Nijel jogaram-se na neve, que logo derreteu. Estourou alguma coisa parecida com uma tempestade, cheia do que, no início, eles imaginaram tratar-se de gritos, mas que depois pareciam discussões acaloradas. Durou um bom tempo, e começou a se dissipar, na direção do Centro.
Água morna enchia a roupa de Nijel. Ele se levantou com cuidado e cutucou Conina.
Juntos, os dois avançaram pela neve derretida até o alto do morro, subiram por um amontoado de pedras e galhos quebrados, e contemplaram o cenário.
As geleiras recuavam sob uma nuvem cheia de luz. Atrás delas, a paisagem era uma rede de lagos interligados.
— Fomos nós que fizemos isso? — perguntou Conina.
— Seria bom acreditar que sim, não seria? — indagou Nijel.
— Seria, mas fomos… — começou ela.
— Provavelmente não. Quem sabe? Vamos procurar um cavalo — propôs ele.
— O apogeu — disse Guerra. — Ou algo assim. Tenho quase certeza.
Eles haviam saído da taverna e estavam sentados num banco, ao sol vespertino. Até Guerra se convencera a tirar parte da armadura.
— Não sei — objetou Fome. — Acho que não.
Peste fechou os olhos incrustados e se recostou nas pedras aquecidas.
— Eu acho — considerou — que era alguma coisa sobre o fim do mundo.
Meditativo, Guerra coçou o queixo. Soltou um soluço.
— Do mundo inteiro? — perguntou.
— Eu acho.
Guerra pensou no assunto.
— Então ficamos de fora — concluiu.
O povo retornava a Ankh-Morpork, que já não era uma cidade vazia, feita de mármore, mas voltara a ser o que sempre fora, estendendo-se aleatória e colorida como uma poça de vômito do lado de fora da lanchonete 24 horas da História.
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