O menino parou de tatear.
Rincewind ajudou-o a se sentar. Coin mirou a areia fria e prateada, depois o céu, depois as Coisas distantes, depois Rincewind.
— Não sei o que fazer — lamentou.
— Sem problema. Eu nunca soube o que fazer — observou Rincewind, com alegria forçada. — A vida inteira andei na incerteza. — Ele hesitou. — Acho que isso se chama ser humano, ou qualquer coisa assim.
— Mas eu sempre soube o que fazer.
Rincewind abriu a boca para dizer que chegara a ver um pouco do que ele estava falando, mas mudou de idéia. Em vez disso, arriscou:
— Anime-se! Veja o lado bom! Poderia ser pior!
Coin correu os olhos ao redor.
— Em que aspecto, exatamente? — perguntou, com a voz já mais normalizada.
— Hum.
— Que lugar é esse?
— Uma espécie de outra dimensão. Acho que a magia irrompeu aqui, e nós viemos junto.
— E essas coisas?
Ambos olharam as Coisas.
— Acho que são as Coisas. Estão tentando voltar pelo canal — explicou Rincewind. — Não é fácil, por causa dos níveis de energia, ou algo assim. Já tive uma aula sobre isso. Hã…
Coin estendeu a mão branca e magra para a testa de Rincewind.
— Posso…? — começou ele.
Rincewind arrepiou-se ante o toque.
— Pode o quê? — perguntou.
— Dar uma olhada dentro da sua cabeça?
— Aaargh.
Está uma bagunça, aqui. Não me admira que você não encontre nada.
— Eeergh.
Precisa de uma faxina.
— Ooogh.
— Ah.
Rincewind sentiu a presença se retirar. Coin franziu a testa.
— Não podemos deixá-las passar — objetou o menino. — Elas têm poderes horríveis. Estão tentando aumentar o canal, e podem conseguir. Procuram entrar no nosso mundo desde… — ele franziu as sobrancelhas — outras iras.
— Eras — corrigiu Rincewind.
Coin abriu a mão que estava fechada e mostrou a Rincewind uma pequena pérola cinza.
— Sabe o que é isso? — perguntou.
— Não. O que é?
— Eu… não me lembro. Mas temos de devolvê-la.
— Tudo bem. Use a fonticeria. Estoure isso tudo aqui, e vamos para casa.
— Não. Elas vivem de magia. Só pioraria a situação. Não posso usar magia.
— Tem certeza? — insistiu Rincewind.
— Sua memória era bem clara a esse respeito.
— Então, o que vamos fazer?
— Não sei!
Rincewind pensou um pouco no assunto e, com ar de determinação, começou a tirar a última meia.
— Não tem meio tijolo — sussurrou, para ninguém em especial. — Vou ter de usar areia.
— Você vai atacar as Coisas com essa meia?
— Não. Vou fugir. A meia é para quando me seguirem.
As pessoas já estavam voltando para Al Khali, onde a torre destruída não passava de um monte enfumaçado de pedras. Algumas almas corajosas prestavam atenção nos escombros, pensando que talvez houvesse sobreviventes a serem resgatados ou roubados, ou ambos.
E, em meio ao entulho, poder-se-ia ouvir a seguinte conversa:
— Tem alguma coisa se mexendo ali debaixo!
— Debaixo daquilo? Pelas duas barbas de Imtal, você escutou mal. Aquilo deve pesar uma tonelada.
— Aqui, irmãos!
Aí se ouviriam muitos suspiros, e então:
— É uma arca!
— Pode ter tesouro, vocês não acham?
— Estão brotando pernas, pelas Sete Luas de Nasreem!
— Cinco luas…
— Aonde ela foi? Aonde ela foi?
— Não interessa, não tem importância. Agora, vamos deixar uma coisa bem clara: de acordo com a lenda, são cinco luas…
Em Klatch, levam a mitologia muito a sério. Só não acreditam mesmo é na vida real.
Os três cavaleiros sentiram a mudança logo ao descer pelas nuvens carregadas de neve, na extremidade mais ao Centro da Planície Sto. Havia um cheiro forte no ar.
— Estão sentindo? — perguntou Nijel. — Eu me lembro bem de quando era pequeno e ficava deitado na cama, no primeiro dia de inverno, sentindo o cheiro…
As nuvens se abriram, e lá embaixo — enchendo as altas planícies de ponta a ponta — estavam os rebanhos dos Gigantes do Gelo.
Eles se estendiam por muitos quilômetros em todas as direções, e o estrondo da marcha acelerada enchia a atmosfera.
As geleiras-touros seguiam na frente, levantando grandes pedaços de terra ao se lançarem implacavelmente adiante. Atrás delas, seguia a grande massa de vacas e bezerros, deslizando no chão já nivelado pelas líderes.
Essas geleiras assemelhavam-se às geleiras conhecidas por nós, do mesmo modo como um leão dormindo na sombra se assemelha a 140 quilos de músculos perversamente coordenados, saltando na nossa direção com a boca aberta.
— … e… e… eu chegava à janela…
Sem nenhum comando adicional do cérebro, a boca de Nijel parou.
O gelo apoderava-se da planície, avançando sob uma grande nuvem de vapor seco. O chão tremia à medida que as líderes passavam, e era óbvio, para quem estava olhando, que quem quer que fosse deter aquilo precisaria de mais do que apenas um quilo de sal-gema e uma pá.
— Vá dar suas explicações — disse Conina. — Mas é melhor gritar. Nijel olhava o rebanho, aturdido.
— Acho que estou vendo uns vultos — notou Creosoto. — Olhem, em cima dos… negócios da frente.
Nijel espiou por entre os flocos de neve. Havia, de fato, algumas criaturas andando sobre as geleiras. Eram seres humanos, ou humanóides, ou humanescos. Não pareciam muito grandes.
Isso se dava porque as próprias geleiras eram imensas, e Nijel não era muito bom em perspectiva. Quando os cavalos baixaram vôo sobre a geleira da frente — um touro enorme, bastante fendido e marcado com morainas —, ficou evidente que um dos motivos de os Gigantes do Gelo se chamarem Gigantes do Gelo era o fato de serem gigantes.
O outro motivo era serem feitos de gelo.
Um vulto do tamanho de uma casa grande estava sentado sobre o touro, incitando-o a esforços maiores com a pua enfiada numa vara comprida. A criatura era rugosa e reluzia verde e azul. Havia uma faixa prateada estreita nos cachos nevados, e os olhos eram pequeninos, negros e fundos, como pedras de carvão. [20] Embora essa fosse a única semelhança com os bonecos criados pelas crianças em resposta a lembranças antigas e ignoradas, em tempo de neve. Era muito pouco provável que aquele Gigante do Gelo virasse um pequeno monte de gelo sujo, com uma cenoura dentro, pela manhã.
Ouviu-se o estrondo de quando as geleiras dianteiras se chocaram contra uma floresta. Alguns pássaros alçaram vôo em desespero. Chovia neve e galhos ao redor de Nijel no instante em que ele se aproximou do gigante, galopando.
O rapaz pigarreou.
— Hã… — disse. — Com licença.
A frente da arrebentação de terra, neve e troncos quebrados, um rebanho de caribus corria apavorado, com os cascos traseiros a poucos metros da derrubada geral.
Nijel tentou outra vez.
— Ei! — gritou.
O gigante virou-se.
— O gue vozê guer? — perguntou. — Zuma daqui, pezoa guente.
— Desculpe, mas será que isso é mesmo necessário?
O gigante encarou-o, estupefato. Virou-se devagar e avistou o resto do rebanho, que parecia se estender até o Centro. Voltou a olhar para Nijel.
— E — respondeu. — Ajo que zim. Zenão, por gue o faríamos?
— Só que tem muitas pessoas que prefeririam que não o fizessem, entende? — argumentou Nijel.
Uma espiral de pedra surgiu na frente da geleira, balançou por um segundo e desapareceu. Ele acrescentou:
— Crianças e animaizinhos também.
— Vão zofrer pelo progrezo. E a noza hora, a gente veio reivindigar o mundo — resmungou o gigante. — Um mundo inteiro de gelo. Zegundo a inevitabilidade da hiztória e o triunfo da termodinâmica.
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